Publicado originalmente n' A Terra é Redonda em 7/4/2023
As mudanças do ensino médio feitas em 2017, o lamentável NEM (novo ensino médio), não é um projeto isolado. Ele faz parte de um conjunto de leis, iniciadas no governo Temer que correspondem à criação de um sistema de ensino, educação, ciência e tecnologia e tomadas de decisão relativas a esses setores, adequado a um novo perfil de país.
Em outubro de 2015, o então PMDB lançou o documento “Uma ponte para o futuro”, que continha as principais diretrizes das ações governamentais, centradas na redução dos direitos, inclusive trabalhistas, na redução do setor público, por meio das privatizações, na redução de impostos, no fim das vinculações constitucionais de gastos (educação e saúde, especialmente), na transferência de decisões de interesse público para o setor privado, entre tantas outras e que serviu para angariar apoios dos setores economicamente dominantes para o golpe de 2016 e a derrubada da presidenta Dilma.
O projeto começou a ser implantado já no primeiro dia do período Temer, 12 de maio de 2016, com a fusão do ministério de ciência e tecnologia com o de comunicação, e o rebaixamento do CNPq na nova estrutura ministerial. O que seguiu a isso foi uma enorme redução do orçamento desse órgão que, em termos reais, caiu rapidamente para a metade ou menos do que havia sido em meados da década de 2010. Esse desmonte estendeu-se para os demais órgãos federais de fomento do conhecimento, Capes e FNDCT, e os recursos totais dessas fontes de financiamento foram reduzidos, em poucos anos e em termos reais, para cerca da terça parte do que havia sido em 2015. Esse desmonte foi mantido no período Bolsonaro e não foi muito intensificado porque essa redução era o objetivo e já havia sido atingido. Esse foi um primeiro aspecto de construção de um novo projeto de país que, como veremos, está vinculado a outros.
No final de setembro de 2016, a medida provisória 746 alterou a LDB e
criou o tal NEM. Vale a pena lembrar que a elaboração da LDB de 2016 demorou
muitos anos e envolveu uma grande participação da sociedade, enquanto a MP em
questão foi convertida em lei [1] em poucos meses e durante um período de
férias escolares: em fevereiro de 2017! Isso impediu o debate com a comunidade
educacional, cientifica e acadêmica e a avaliação de suas consequências
práticas. Pouquíssimas foram, por isso, as manifestações da sociedade. Assim
nasceu o novo ensino médio, cujas característica incluem: obrigatoriedade de
ensino apenas de português e matemática na segunda metade desse ciclo
educacional; o conteúdo previsto na base curricular nacional (a BNCC) não pode,
por lei, ocupar mais do que 1.800 horas (uma lei que proíbe que se ensine mais
é, realmente, fantástica!); a criação da figura de um professor por notório
saber, notoriedade esta reconhecida pelos muitos sistemas de ensino do
país com base em atividades práticas, inclusive no setor privado, sem exigência
de licenciatura ou mesmo de curso superior.
Demorou algum tempo para que a sociedade, estudantes especialmente,
percebessem, com clareza, as consequências práticas do NEM. Mas, quando
percebidas, em especial o aumento do abismo entre as escolas públicas e
privadas que essa mudança provoca, a sociedade deixou clara sua discordância e
os estudantes foram às ruas.
As alterações iniciadas no período
Temer continuaram no período Bolsonaro, adicionadas a uma coleção estranha de
ocupantes do que deveria ser um ministério dedicado à educação, e de propostas
grotescas, mas seguindo na mesma linha de desmonte do sistema educacional
público. O projeto Future-se ilustra bem isso.
Em janeiro de 2019, a lei 13.800, promulgada por Bolsonaro, mas
construída no período Temer, passou a permitir que entidades privadas doassem
recursos para instituições públicas, cujos beneficiários e finalidades eram definidos
apenas por elas, independentemente da instituição recebedora. Assim, ficou
possível que uma entidade pague para pesquisadores e estudantes desenvolvem
projetos definidospor essa entidade, independentemente da avaliação por
conselhos de departamento, comissão de pesquisas, congregações, conselhos
universitários etc. Consequentemente, com pouquíssimos recursos essas entidades
privadas (constituídas como institutos ou fundações) passam a ter um grande
poder, ao cooptarem pessoas e definir os rumos de universidades e instituições
de pesquisa públicas. Essa possibilidade foi apresentada à sociedade como
correspondendo a ações filantrópicas e desinteressadas. (A justificativa que
foi apresentada no período Temer para a MP que antecedeu a lei é uma costura de
mentiras, meias verdades e manipulações [3].) A presença de várias fundações
privadas nas universidades aumentou enormemente após a lei 13.800 e passam a
ter influências em áreas estratégicas. Procure na sua instituição que
facilmente encontrará algumas delas atuando em “parceria” com pesquisadores,
estudantes e docentes.
Essas e muitas outras ações trazem como consequência um país fraco em
conhecimento e, portanto, um país manipulável, submisso. Um país apenas
produtor de matéria prima e fornecedor de mão de obra barata, cujas decisões
estratégicas são tomadas por aquelas pessoas que dirigirão essas atividades, os
donos e grandes acionistas das grandes empresas; aí entra a lei 13.800 e as
fundações privadas.
Se queremos ter a chance de construir um país soberano e independente, devemos lutar não apenas pela revogação do NEM, mas de toda a lei 13417/2017, pela recuperação dos órgãos de fomento à C&T e ao conhecimento em geral, pela revogação da famigerada lei 13.800 e pela derrota de todo o projeto de país construído no período Temer e Bolsonaro.
[1] As mudanças na LDB feitas pela lei 13.415, de fevereiro de 2017, estão neste endereço, http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2017/Lei/L13415.htm#art1
[2] “Lei 13.800/2019: mais um problema?, https://jornal.usp.br/artigos/lei-13-800-2019-mais-um-problema?
[3] A MP 851, de setembro de 2018, pode ser consultada aqui. A
justificativa, que aparece nas páginas 21 e seguintes merece ser lida.
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