Publicado no Jornal da USP em 31/5/2019
No Brasil ocorrem, com alguma regularidade, ataques à educação pública em geral e ao ensino público superior gratuito, em particular. Uma forma de ataque a este último é a combinação da crítica à gratuidade das instituições públicas com a defesa do ensino privado. Frequentemente são apresentados casos de outros países como exemplos a serem seguidos. Mas esses países são escolhidos, muitas vezes, não por seus sucessos educacionais e seus altos padrões de democracia, mas por razões ideológicas, inclusive fundamentadas em interesses econômicos.
Para
ter uma visão mais ampla de como é organizado o ensino superior nos demais
países, vamos examinar alguns exemplos, em especial, de um conjunto de países
europeus, entre os quais estão vários casos que atualmente contam com excelentes
sistemas educacionais e ótimos padrões de democracia em relação às demais nações,
mas que, há cerca 50 ou 100 anos[i],
apresentavam algumas características educacionais não muito diferentes das
nossas atuais.
Já de início, vale salientar que, como regra, o ensino em
geral e o ensino superior em particular são dominantemente públicos, na maioria
dos países. Excluindo-se pouquíssimos países cuja população é muito pequena - o
que até mesmo inviabiliza a criação de instituições nacionais de ensino
superior[ii] -
o Brasil é o nono, em um conjunto de quase 150 países, com maior taxa de
matrículas em instituições privadas. (Veja figura.)
Vale
lembrar que os EUA não estão entre os países com maiores taxas de privatização.
Na verdade, algumas das maiores taxas de atendimento privado no ensino superior
são encontradas na América Latina, destacando-se Chile e Brasil.
Assim, em comparação ao Brasil, enquanto nós temos
cerca de 3/4 dos estudantes do ensino superior em instituições privadas, nos
EUA essa relação é exatamente a inversa: 3/4 dos estudantes estão em
instituições públicas, o que provavelmente contraria algumas expectativas mal
informadas. Vale lembrar, ainda, que aquelas famosas universidades privadas de
ponta daquele país são extremamente pequenas. Por exemplo, a maior daquelas
famosas universidades do nordeste dos EUA[iii],
Cornell, tem cerca de 15 mil alunos de graduação. Cada uma das demais
instituições desse grupo tem tantos alunos quanto uma única das grandes
unidades da USP, como a EACH, a FFLCH ou a Politécnica, e a soma do número de
alunos de todas elas é aproximadamente igual ao número total de estudantes da
USP. As universidades privadas desse grupo respondem por menos do que 0,3% das
matrículas nos EUA. Para se ter uma ideia complementar das proporções, os dois
grandes sistemas universitários públicos estaduais do estado da Califórnia, a
Universidade da Califórnia e a Universidade do Estado da Califórnia, têm,
respectivamente, cerca de 200 mil e quase 500 mil estudantes de graduação. Além
desses dois sistemas universitários, há cerca de dois milhões de estudantes em
cursos superiores nos “colleges” públicos estaduais, instituições de alguma
forma equivalente às nossas faculdades de tecnologia. Dois sistemas públicos no
estado de Nova Iorque[iv]
têm quantidades de estudantes equivalentes às duas universidades estaduais da
Califórnia.
Em vários países, o ensino superior privado resume-se a
instituições religiosas, a ramos de instituições estrangeiras e a cursos de
interesse exclusivo do setor empresarial privado.
Na média mundial, a taxa de privatização é bastante parecida
com a dos EUA, sendo que a maioria dos países europeus está abaixo desse índice,
como pode ser conferido por alguns casos mostrados no gráfico. Portanto, se há
algo de muito diferente no sistema de ensino superior do Brasil quando
comparado com os demais países é sua enorme taxa de privatização, responsável
por parte dos graves problemas que o país apresenta quanto à formação de
profissionais em todas as áreas.
Outro aspecto a ser considerado diz respeito ao
financiamento desse nível educacional. Como regra geral, o ensino superior
público é financiado integralmente pelos governos, com base na arrecadação de
impostos, sendo poucos os países em que mais do que a décima parte do custo das
instituições públicas é coberta diretamente pelos próprios estudantes.
Nos países europeus, o ensino superior é, como regra,
totalmente gratuito para seus cidadãos e cidadãs. Em alguns países, são
cobradas pequenas taxas, algumas delas simbólicas, abaixo da centésima parte da
renda per capita nacional e, em alguns casos, inferiores mesmo a um milésimo da
renda per capita. Mesmo nos países em que as taxas excedem 1% da renda per
capita nacional, elas são compensadas pelas vantagens financeiras oferecidas
aos estudantes (como alimentação, transporte etc.). Portanto, nem o
financiamento do ensino superior depende do pagamento por parte dos estudantes
nem as pequenas taxas, das quais é possível ficar isento em muitos casos, podem
ser consideradas empecilhos econômicos à vida estudantil, ainda mais em países
com alta e muito bem distribuída renda quando comparados ao Brasil.
Imaginar que essas taxas possam ser caracterizadas como
ensino pago é como imaginar que o pagamento de refeições nos bandejões das
universidades brasileiras, algumas taxas exigidas para se ter acesso a algum
tipo de serviço ou o pagamento de meia passagem no transporte coletivo possam
configurar cobranças pela educação. Entre os poucos países europeus em que há
realmente cobrança de anuidades estão a Inglaterra e a Rússia.
Alguns
países europeus estendem a gratuidade a estudantes estrangeiros em geral.
Outros a estendem apenas a estudantes provenientes de países pobres ou a
estudantes que, independentemente da renda, aceitem acompanhar os cursos na
língua do país. Apenas pessoas que queiram seguir o curso em inglês deverão
pagar uma taxa, cujos valores são, usualmente, bastante acessíveis. (A tabela
mostra alguns detalhes sobre o ensino superior para 18 países.)
Foi
com base em um sistema educacional público e gratuito, tratando a todos os
estudantes de forma igualitária no que diz respeito às atividades dentro das
escolas e universidades, que os países europeus formaram seus quadros
profissionais e construíram suas democracias e seus sólidos sistemas culturais
e científicos. Talvez tenhamos muito a aprender com esses países, em lugar de
mimetizar alguns poucos países por interesses financeiros.
[i]
Por exemplo, a atual taxa de analfabetismo brasileira entre pessoas com 15 anos
ou mais, 7%, se aproxima das taxas de analfabetismo dos Países Baixos do início
do Século XX. Naquela mesma época, a taxa de analfabetismo nos EUA era próxima
ou mesmo inferior da à nossa atual taxa de analfabetismo.
[ii] Foram excluídos da análise países com menos do que 200
mil habitantes. Em muitos desses países, é mais adequado usar as instalações
universitárias de outros países do que implantar uma universidade própria. Por
exemplo, Luxemburgo, uma país com meio milhão de habitantes e com uma das mais
altas rendas per capita da Europa, teve sua primeira universidade nacional
criada em 2003.
[iii] Essas universidades, membros da chamada Ivy League, são: Brown, Columbia,
Cornell, Dartmouth, Harvard, Princeton, Pensilvânia e Yale. Além dessas, há
outras instituições universitárias privadas de ponta, todas igualmente de
pequeno porte, como Stanford, MIT, Duke, Northwestern, Notre Dame, Wishinton in
St. Louis, Caltech, Johns Hopkins, New York.
[iv] State
University of New York e City University of New York
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