O (surpreendentemente?) baixo
custo de uma boa universidade pública
Jorrnal da USP, 3/agosto/2021
Há, em especial no Brasil, uma enorme campanha contra o setor público e uma de suas “bases” é a sua suposta (e falsa) ineficiência em todas as áreas e, consequentemente, seu hipotético elevado custo em comparação com o setor privado. Entretanto, um exame dos orçamentos das instituições públicas mostra claramente a falsidade disso. Vejamos alguns exemplos no caso do ensino superior, examinando as duas maiores unidades da USP, a Escola Politécnica (EP) e a Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas (FFLCH).
A tabela mostra alguns
detalhes do orçamento e do número de alunos matriculados nessas duas unidades,
cuja fonte é o Anuário Estatístico da USP de 2020 (com dados correspondentes ao
ano de 2019). O custo direto de uma unidade de ensino e pesquisa da USP é
formado pelos salários e encargos trabalhistas de docentes e funcionários
técnicos e administrativos, pelos vales refeição e alimentação e pelas despesas
de custeio e investimento. Além do custo direto, há despesas feitas por
diversos órgãos e pela administração central da universidade que não são
distribuídas pelas unidades, mas que atendem a todas elas[i]. A estimativa do impacto
desses valores no custo de cada uma das duas unidades analisadas foi feita com
base na proporção dos seus estudantes em relação à totalidade das matrículas na
universidade. Os valores aparecem na tabela como “Distribuição das despesas
gerais”.
As despesas com
desenvolvimento científico e tecnológico em uma universidade, que também aparecem
na tabela, foram estimadas conforme um padrão elaborado pela OCDE[ii] e adotado de forma ampla
quando são calculados os investimentos em C&T de um país. Elas não devem
ser incluídas entre as despesas de ensino ou de extensão de serviços à
sociedade.
Se quisermos uma
estimativa mais acurada das despesas correspondentes apenas ao ensino,
deveríamos excluir as despesas com extensão de serviços à sociedade feitos por
aquelas duas unidades bem como parte das muitas despesas da universidade não
exclusivamente correspondentes ao ensino, como, por exemplo, com a editora e a
rádio mantidas pela universidade. Igualmente, deveríamos considerar as aulas recebidas
pelos alunos de cada uma daquelas duas unidades dadas por docentes de outras
unidades, bem como as oferecidas por elas para outras unidades. Entretanto, como
esses valores são pequenos, eles em nada alterariam as conclusões.
Considerando as despesas
e o número de matrículas[iii], chegaríamos a um custo
mensal por aluno de cerca de R$ 1.300 no caso da Faculdade de Filosofia e
R$ 1.700 no caso da Escola Politécnica. A atualização desses valores para
meados de 2021 corresponderiam a menos do que 2 mil reais por mês no caso da EP
e menos do que mil e quinhentos, no caso da FFLCH. Outras formas de se estimar
os custos do ensino, diferentes da aqui apresentada, poderiam levar a valores
diferentes daqueles obtidos pela forma escolhida que, como no caso das pequenas
variações citadas anteriormente, não alterariam as conclusões.
EP |
FFLCH |
||
Número de matrículas |
Graduação |
5100 |
8700 |
Pós-graduação |
1900 |
2900 |
|
Especiais |
1150 |
940 |
|
Salários,
R$ milhões |
Docentes |
99,9 |
102,2 |
Téc. E adm. |
52,2 |
37,6 |
|
Vales
alimentação e refeição |
12,7 |
11,4 |
|
Outras despesas |
18,1 |
12,5 |
|
Distribuição das despesas gerais (R$
milhões) |
71 |
117 |
|
Despesas totais (R$ milhões) |
254 |
281 |
|
Despesas com C&T (R$ milhões) |
82 |
84 |
|
Despesas com ensino e extensão (R$
milhões) |
172 |
197 |
Nenhuma instituição
privada consegue oferecer cursos com as mesmas cargas horárias, mesmas relações
entre o número de alunos por docente, com quadros docentes experientes e titulados,
com equipamentos como laboratórios ou bibliotecas também de qualidade, oferecendo
atendimento dos alunos fora do horário de aulas, inclusive com programas de
iniciação científica, mantendo, ainda, instrumentos de assistência social aos
estudantes com orçamentos por aluno equivalentes. Os valores de mensalidades
nos cursos privados nas mesmas áreas e de mesma qualidade são bem maiores do
que os aqui estimados. Embora os dados apresentados correspondam a apenas duas
unidades da USP, essas conclusões podem ser estendidas às demais.
Outras vantagens do setor
público
Além do aspecto
financeiro, há inúmeras outras vantagens nas instituições públicas quando comparadas
com instituições privadas. O setor público pode (e deve) oferecer os cursos
mais necessários, tanto no que diz respeito às áreas de conhecimento como às
regiões onde serão instalados. Nenhuma dessas duas possibilidades está aberta
para o setor privado, dada sua dependência da existência de uma população capaz
de arcar com as mensalidades. Essa dependência também limita as regiões onde
elas se instalam, bem como os cursos que oferecem, que devem “caber no bolso”
dos seus alunos.
Uma contribuição
importante dada pela instalação de uma instituição de ensino e pesquisa de
qualidade em uma região antes carente – coisa que apenas o setor público pode
fazer – é o seu efeito sobre o desenvolvimento cultural, científico, artístico
e tecnológico, bem como seu impacto sobre o crescimento econômico local. É
importante observar que esse efeito ocorre tanto pelos estudantes formados como
pela presença na região de um grupo de profissionais – docentes, pesquisadores
associados à instituição, inclusive quando em seu quadro técnico e
administrativo – antes inexistente. Essa possibilidade também não existe no
caso de instituições privadas, dada a dependência com o poder aquisitivo de
seus alunos.
Estamos no caminho errado
Entre outras, são essas algumas
das razões que fazem com que a enorme maioria dos países opte pelo ensino
público, e isso em todos os níveis. Mas o caminho que o Brasil segue não é esse.
Ao contrário, quanto ao ensino superior, estamos entre os países com as maiores
taxas de privatização, da ordem de 3/4 das matrículas em instituições privadas,
proporção muito mais alta do que o que se observa nos países europeus, nos EUA
e Canadá e, com a exceção do Chile, na América do Sul.
Esse caminho não nos
levará a um bom destino.
[i] Manutenção de equipamentos de uso comum por todas as
unidades, conservação dos campi, assistência estudantil, consumo de água,
eletricidade e telefonia, entre diversas outras despesas.
[ii] O
Manual de Frascati é um documento elaborado pela OCDE com orientações relativas
à metodologias para estimar os indicadores de ciência e tecnologia de um país. A publicação “Indicadores de Ciência,
Tecnologia e Inovação em São Paulo 2010”, Fapesp, ilustra o uso daquelas
orientações. Ver https://fapesp.br/indicadores2010
[iii] O número de matrículas corresponde a uma média entre
os valores do primeiro e do segundo semestre.
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