Isso sim é doutrinação
Publicado originalmente em Carta Capital, 18/6/2021
O ensino domiciliar, ora em discussão no país, é uma forma de educação que ocorre sob a responsabilidade dos pais ou responsáveis pela criança ou pelo adolescente. Essa modalidade surgiu, na forma atual, na parte final do Século XX, especialmente nos EUA. Atualmente, nos vários países, sua situação vai da simples proibição, como, por exemplo, na Alemanha, nos Países Baixos, na Suécia ou nas duas Coreias, a uma ampla aceitação, como ocorre nos EUA.
Em um grande conjunto de países, ele á legal, mas restrita a casos específicos, como o de crianças doentes e impossibilitadas de frequentar escolas. Com frequência, não atinge mais do que um milésimo da população escolar.
Os EUA é
talvez o país em que a taxa de matrículas dessa modalidade é a mais alta, de cerca
de 3,5% da população estudantil. Esse percentual é muitas vezes superior ao
australiano, por exemplo, que atinge apenas cerca de 0,5% das matrículas, apesar
de ser este um país onde o ensino domiciliar é legal e a distância é uma
barreira real para a população.
Um dos fatores que levam
à opção por esse tipo de ensino nos EUA é a qualidade das escolas. De fato, em
comparação com os demais países industrializados, os estudantes dos EUA não apresentam
um alto desempenho; ao contrário, ele está abaixo daquele que seria esperado levando
em conta suas possibilidades econômicas. Considerando aquela motivação, concluímos
que uma melhora do sistema escolar faria com que menos pessoas optassem pelo
ensino domiciliar. Assim, ele não é alguma coisa que contribua para melhorar a
educação, sendo, de fato, a fuga de um problema que tem solução.
Outra das principais
motivações para a opção pelo ensino domiciliar naquele país é a preocupação com
a violência. A solução para esse problema seria melhorar o ambiente escolar e
enfrentar os aspectos sociais que levam a ela. Afastar as crianças e jovens da
escola não ajudará a resolver ou reduzir o problema. O resultado pode ser mesmo
o oposto, pois tem surgido evidências de que o ensino domiciliar, nos EUA, tem servido
para ocultar o abuso de crianças e adolescentes. Em um sistema social muito
mais frágil como o nosso, a situação poderá ser bem pior.
Outro fator a motivar as
pessoas a optarem pelo ensino domiciliar é o religioso. Mas este não deveria
ser uma preocupação das escolas, devendo ser deixado para as instituições
religiosas, fora dos horários e dos espaços escolares.
Vale observar que o
ambiente escolar é, em todo o mundo, o melhor a se oferecer a uma criança ou um
jovem. Em qualquer país, qualquer que seja a realidade social ou econômica da
população, as escolas tendem a ser o espaço mais adequado ao convívio com outras
pessoas e ao desenvolvimento pessoal. Privar crianças e jovens da rica vida
social e das possibilidades de desenvolvimento oferecidas pelas escolas é uma
violência a ser combatida.
As propostas de ensino
domiciliar ora em tramitação no poder legislativo não são frutos de estudos bem
embasados. Ao contrário, na justificativa que acompanha o projeto de lei
apresentado pelo poder executivo, PL 2401 de 2019, aparecem como consultadas
três instituições privadas, uma delas dos EUA, e todas envolvidas com a defesa
do ensino domiciliar. Não foram consultadas entidades especializadas em
educação ou pesquisadores neutros quanto ao apoio ou não àquela modalidade de
ensino. Foram consultadas entidades e pessoas que dariam a resposta desejada.
Um dos grandes problemas educacionais
do Brasil é a escassez de recursos financeiros. Mesmo após o aumento ocorrido nas
últimas décadas, a atual situação impede as escolas públicas de atenderem
adequadamente seus estudantes, sobrecarrega os professores, quer pelo tamanho
das turmas, quer pelas cargas horárias que precisam assumir para compensar uma
remuneração muito abaixo daquela recebida por profissionais que, com o mesmo
nível educacional, atuam em outras áreas. Esse e outros problemas fazem com que
o Brasil seja um dos países da América do Sul com piores indicadores
educacionais. Dados divulgados pela Unesco mostram que somos o segundo pior em
analfabetismo adulto, melhor apenas do que a Guiana. Embora o analfabetismo
adulto reflita o sistema educacional de algumas décadas atrás, época em que grande
parte dos hoje adultos analfabetos deveriam ter sido alfabetizados, os
indicadores dependentes do sistema escolar mais recente nos colocam apenas em
uma posição intermediária nesse conjunto de países, mas ainda na metade dos
países em pior situação. O ensino domiciliar não é uma solução para esses
problemas; ao contrário, será um problema a mais.
Uma leitura dos projetos
de lei apresentados pelo poder executivo ou por membros de sua base parlamentar
para viabilizar o ensino domiciliar revela o que se pretende. Um desses, o PL
3262 de 2019, recentemente aprovado pela Comissão de Constituição e Justiça da Câmara
dos Deputados, altera o Código Penal e faz que pais ou responsáveis que
ofereçam ensino domiciliar não sejam mais obrigados a matricular suas crianças
em escolas. Como não foi definido o que seria, esse ensino domiciliar, ele pode
ser, enquanto continuar essa omissão, qualquer coisa.
O já citado projeto de
lei do poder executivo deixa claro que o ensino domiciliar não precisa ser
feito no domicílio e pode ser ofertado por instituições não necessariamente
escolares. Isso significa, na prática, que qualquer tipo de instituição poderá
vir a ser uma instituição educacional e qualquer pessoa, por consequência, pode
ser um professor ou uma professora, independente da formação.
O ensino domiciliar é
parte de um amplo projeto do governo Bolsonaro na direção de tirar da sociedade
o poder da produção e disseminação do conhecimento, da cultura, da ciência.
Entre as consequências disso estarão o rebaixamento do Brasil frente aos demais
países, inclusive aos nossos vizinhos, e o acirramento da já tão enorme
desigualdade do nosso sistema educacional.
Continuando nesse passo,
em pouco tempo não restará espaço para o desenvolvimento do conhecimento e do
pensamento crítico e para a criação de uma escola emancipadora e voltada para a
promoção da cidadania e do desenvolvimento social e cultural do país.
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