18 de dez. de 2017

A escolarização dos mais pobres

Publicado no Correio da Cidadania em 28/nov/2017

Neste ter­ceiro ar­tigo de uma pe­quena série sobre a edu­cação bra­si­leira, será exa­mi­nada uma de suas ca­rac­te­rís­ticas mais per­versas e da­nosas para o fu­turo do país e a cons­trução da de­mo­cracia: a de­si­gual­dade. A de­si­gual­dade edu­ca­ci­onal está re­la­ci­o­nada com a de­si­gual­dade na dis­tri­buição de renda no país, pois ambas, em um país cuja es­cola pú­blica é pre­cária e sub­fi­nan­ciada e a edu­cação é mer­ca­doria a ser ven­dida e com­prada, se re­a­li­mentam in­ten­sa­mente, for­mando um cruel cír­culo vi­cioso.


A con­cen­tração de renda no Brasil é uma das pi­ores do mundo e, por volta de 1990, fomos, nada mais, nada menos do que o país mais de­si­gual e in­justo de todo o mundo. Du­rante toda a dé­cada de 1990, a con­cen­tração de renda no Brasil pouco se al­terou. Apenas a partir de 2000, apro­xi­ma­da­mente, a con­cen­tração de renda no país co­meçou a re­tro­ceder. Apesar disso, como par­timos de uma pés­sima si­tu­ação e evo­luímos muito len­ta­mente, ainda hoje es­tamos no grupo dos 10 países mais de­si­guais do mundo (1).
  
A con­cen­tração de renda bra­si­leira é tal que basta ter um ren­di­mento do­mi­ci­liar por pessoa da ordem de um sa­lário mí­nimo para estar na me­tade mais bem aqui­nhoada da po­pu­lação. Note que essa renda deve cus­tear todas as des­pesas, como mo­radia, ali­men­tação, ves­ti­menta, trans­porte, saúde etc. (para fazer parte dos 10% mais ricos, é ne­ces­sário ter uma renda do­mi­ci­liar por pessoa pró­xima dos quatro mil reais ou uma renda in­di­vi­dual da ordem do dobro disso (2)).
  
A renda média do grupo for­mado pelos 10% mais ricos é quase 40 vezes maior do que a renda média dos 10% mais po­bres. Ou seja, o que um membro tí­pico do pri­meiro grupo ganha e gasta em um dia, um membro da­quele grupo mais pobre ganha e gasta du­rante todo um mês.
  
Evi­den­te­mente, essa enorme de­si­gual­dade na dis­tri­buição de renda bra­si­leira não é um fato da na­tu­reza, mas uma cons­trução po­lí­tica e so­cial para a qual a edu­cação muito con­tribui. Quase a me­tade dos tra­ba­lha­dores bra­si­leiros não com­pletou o en­sino fun­da­mental. Con­se­quen­te­mente, pes­soas desse grupo ocupam po­si­ções in­fe­ri­o­ri­zadas na so­ci­e­dade e no mundo do tra­balho e têm baixa renda: o ren­di­mento médio desse grupo é da ordem de um sa­lário mí­nimo mensal (note que essa é a média; um grande con­tin­gente de tal grupo ganha e gasta menos do que a me­tade dessa média).
  
Ser ex­cluído do en­sino fun­da­mental antes de sua con­clusão não foi uma es­colha da­quelas pes­soas quando cri­anças. Assim, tais pes­soas foram ví­timas pelo menos duas vezes: ao serem ex­cluídas do sis­tema edu­ca­ci­onal e, por causa disso, ao ocu­parem po­si­ções in­fe­ri­o­ri­zadas na so­ci­e­dade.

Fre­quentar uma es­cola custa caro

Um dos fa­tores mais im­por­tantes para a ex­clusão da es­cola é seu custo. Apesar de não ter men­sa­li­dades, a frequência à es­cola pú­blica tem custos di­retos e in­di­retos, pois im­pede que jo­vens e cri­anças se de­di­quem a ati­vi­dades econô­micas ou que con­tri­buam com os ser­viços do­més­ticos (como co­zi­nhar, tomar conta de pa­rentes idosos ou de ir­mãos me­nores etc.), coisas que têm im­pacto fi­nan­ceiro di­reto, no pri­meiro caso, e in­di­reto, no se­gundo. Além disso, a frequência es­colar induz des­pesas di­retas com ma­te­rial es­colar, uni­forme e trans­porte, por exemplo, e in­di­retas, como sa­patos e roupas em me­lhor es­tado do que aqueles usados em casa, uso de um pos­sível es­paço para es­tudo ou para guardar ma­te­rial es­colar etc.

Em­bora os fatos possam pa­recer me­nores quando olhados da pers­pec­tiva dos grupos menos des­fa­vo­re­cidos, eles são muito im­por­tantes para aqueles que estão em uma faixa de renda in­fe­rior a um sa­lário mí­nimo por pessoa por mês – o li­miar entre as me­tades mais e menos pobre da po­pu­lação. Para a dé­cima parte mais des­fa­vo­re­cida da po­pu­lação, cuja renda por pessoa é in­fe­rior a cinco ou dez reais por dia (in­sis­tindo: rendas que devem ser des­ti­nadas à mo­radia, ali­men­tação, ves­ti­menta etc.), aquelas des­pesas di­retas e in­di­retas ou a perda de renda pro­ve­ni­ente da frequência es­colar são bar­reiras ab­so­lu­ta­mente in­trans­po­ní­veis.
  
Os poucos e mo­des­tís­simos ins­tru­mentos de gra­tui­dade ativa são in­su­fi­ci­entes para com­pensar as des­pesas di­retas e in­di­retas pela frequência à es­cola. Esse fato, com­bi­nado com a pouca pro­teção que o país ofe­rece a suas cri­anças e ado­les­centes, à falta de re­cursos nas es­colas para dar um aten­di­mento es­pe­cial para aqueles que ne­ces­sitam, da vi­o­lência dentro e fora das es­colas, do aban­dono no qual vivem muitas cri­anças e de muitos ou­tros pro­blemas, acabam por fazer com que um enorme con­tin­gente de cri­anças e jo­vens sejam im­pe­didas de dar con­ti­nui­dade aos es­tudos. A con­sequência é que uma em cada 4 cri­anças deixa o en­sino fun­da­mental sem com­pletá-lo e quase me­tade das pes­soas aban­dona a es­cola sem com­pletar o en­sino médio.

De­si­gual­dade edu­ca­ci­onal

A de­si­gual­dade edu­ca­ci­onal no Brasil, que acom­panha a de­si­gual­dade de renda e pa­trimônio, é enorme e, quando me­dida em di­nheiro, mostra toda sua per­ver­si­dade.

Nos ex­tremos mais po­bres, todo o in­ves­ti­mento edu­ca­ci­onal feito na edu­cação de uma cri­ança li­mita-se àqueles poucos anos de es­cola pú­blica, que pode não ser maior do que dez ou vinte mil reais ao longo de toda a vida para aqueles que não con­cluem o en­sino fun­da­mental. No ex­tremo mais rico, os in­ves­ti­mentos es­tri­ta­mente es­co­lares podem su­perar um mi­lhão de reais ao longo da vida, sejam eles em ins­ti­tui­ções pri­vadas ou pú­blicas. In­cluindo-se aulas par­ti­cu­lares, cursos de lín­guas, compra de ma­te­riais edu­ca­ci­o­nais, vi­a­gens cul­tu­rais e muitas ou­tras coisas co­muns nos seg­mentos mais ricos e to­tal­mente ine­xis­tentes nos grupos mais po­bres, os va­lores são ainda mai­ores. Ou seja, o in­ves­ti­mento edu­ca­ci­onal de uma cri­ança pobre ao longo de toda a vida pode não ser maior do que o in­ves­ti­mento edu­ca­ci­onal de uma cri­ança pro­ve­ni­ente dos es­tratos mais fa­vo­re­cidos da po­pu­lação em al­guns poucos meses.
  
O quadro abaixo dá uma ideia do nível edu­ca­ci­onal com que cri­anças e jo­vens pro­ve­ni­entes de quatro grupos po­pu­la­ci­o­nais de igual ta­manho (cerca de 50 mi­lhões de pes­soas cada) deixam, hoje, o sis­tema edu­ca­ci­onal. Além do que a ta­bela ex­pli­cita, há as­pectos qua­li­ta­tivos es­con­didos: a es­cola fre­quen­tada por aquelas cri­anças pro­ve­ni­entes dos grupos mais po­bres e que a aban­do­naram de­pois de poucos anos nada tem a ver com a es­cola dos mais ricos.

Renda do­mi­ci­liar per ca­pita, em sa­lá­rios mí­nimos por mês
Si­tu­ação es­colar tí­pica das cri­anças e jo­vens de cada grupo



Abaixo de meio
Não con­cluem o En­sino Fun­da­mental

Entre meio e um
Con­cluem o Fun­da­mental, mas não o Médio

Entre um e dois
Con­cluem o Médio, mas não o Su­pe­rior

Acima de dois
Grande parte con­clui o En­sino Su­pe­rior


  
A con­sequência disso tudo é que o de­sen­vol­vi­mento es­colar da po­pu­lação, além de, em média, ser muito baixo, é muito de­si­gual, re­pro­du­zindo o que ocorre com a dis­tri­buição de renda do país. No fu­turo, a de­si­gual­dade edu­ca­ci­onal dará origem a uma po­pu­lação com enorme de­si­gual­dade de renda. A com­bi­nação baixa renda hoje im­plica em baixa es­co­la­ri­dade dos fi­lhos ou de­pen­dentes; no fu­turo, estes, por terem baixa es­co­la­ri­dade, terão baixa renda, forma um cír­culo vi­cioso muito per­verso.
  
Caso o Brasil qui­sesse cons­truir um fu­turo menos de­si­gual, pre­ci­saria ga­rantir que o sis­tema edu­ca­ci­onal também fosse menos de­si­gual, fa­zendo com que a con­dição de es­co­la­ri­zação do pobre fosse igual à do rico. Isso feito, os fa­tores de de­si­gual­dade se res­trin­gi­riam àquilo que é con­se­guido fora da es­cola. Mas, ao con­trário, o que tem ocor­rido, em es­pe­cial com as me­didas to­madas após o golpe de 2016, é au­mentar ainda mais a de­si­gual­dade por meio do sis­tema edu­ca­ci­onal.

Isso ocorre por vá­rios fa­tores, in­clu­sive pela di­mi­nuição dos gastos pú­blicos com edu­cação pú­blica (como a pro­vo­cada pela emenda cons­ti­tu­ci­onal 95, ape­li­dada, quando em tra­mi­tação, de PEC do fim do mundo, em parte re­pro­du­zida por es­tados e mu­ni­cí­pios) e pela trans­for­mação cada vez maior da edu­cação em uma sim­ples mer­ca­doria a ser com­prada se­gundo as pos­si­bi­li­dades de cada um. Vale lem­brar que o se­cre­tário de edu­cação pau­lista en­tende que, ex­cluídas se­gu­rança e jus­tiça, “tudo o mais (edu­cação in­clu­sive) de­veria ser pro­vi­den­ciado pelos par­ti­cu­lares” (3).

Evi­den­te­mente, quem pensa assim e age de acordo com essa norma está de­fen­dendo a ma­nu­tenção da de­si­gual­dade, a ex­clusão so­cial, a mar­gi­na­li­zação dos fi­lhos dos po­bres, a con­cen­tração de renda, a vi­o­lência, a ma­nu­tenção da po­breza; enfim, tudo que de pior os grupos eco­no­mi­ca­mente do­mi­nantes têm im­posto ao país.

Con­clusão
  
Para que o Brasil fosse hoje um país re­al­mente de­mo­crá­tico, de­veria, no pas­sado, ter tra­tado de forma igua­li­tária suas cri­anças, in­de­pen­den­te­mente de suas con­di­ções ge­o­grá­ficas, ét­nicas e econô­micas. Como isso não ocorreu, temos hoje um pa­drão ter­rível de ex­clusão, de­si­gual­dade e mar­gi­na­li­zação que im­pede o es­ta­be­le­ci­mento de uma so­ci­e­dade ple­na­mente de­mo­crá­tica. Para que te­nhamos, no fu­turo, as con­di­ções ne­ces­sá­rias para a de­mo­cracia, de­ve­ríamos ga­rantir, hoje, os di­reitos à edu­cação a todas as pes­soas. Mas fazer isso “bate de frente” com os in­te­resses mes­qui­nhos dos grupos do­mi­nantes. Assim, a ta­refa ime­diata seria en­frentar esta bar­reira, in­clu­sive de­nun­ci­ando os mé­todos usados para im­pedir o de­sen­vol­vi­mento de um sis­tema edu­ca­ci­onal igua­li­tário no país.

Tais mé­todos in­cluem a des­qua­li­fi­cação do sis­tema pú­blico e dos que nele tra­ba­lham e es­tudam. Essa des­qua­li­fi­cação é usada para jus­ti­ficar a ne­gação dos re­cursos fi­nan­ceiros ne­ces­sá­rios para me­lhorar as con­di­ções de tra­balho (sa­lário in­cluído) e es­tudo nas es­colas pú­blicas bra­si­leiras (4). Ora, a falta de re­cursos é um pro­jeto po­lí­tico dos grupos do­mi­nantes, não uma re­a­li­dade que não se pode mudar: muitos países equi­va­lentes ao Brasil têm sis­temas edu­ca­ci­o­nais muito me­lhores do que o nosso. Man­tida a atual si­tu­ação edu­ca­ci­onal, não há ne­nhuma pos­si­bi­li­dade de um fu­turo re­al­mente de­mo­crá­tico: es­tamos cons­truindo, agora e por meio do sis­tema edu­ca­ci­onal, nosso atraso fu­turo.

A forma de se im­ple­mentar tal pro­jeto po­lí­tico e a con­se­quente ca­rência de re­cursos pú­blicos passa pela enorme so­ne­gação fiscal, por isen­ções de im­postos, por sub­sí­dios para o setor edu­ca­ci­onal pri­vado em de­tri­mento do pú­blico, pelas alí­quotas baixas dos im­postos di­retos, pelo pra­ti­ca­mente ine­xis­tente im­posto sobre grandes pa­trimô­nios. Vamos, em um pró­ximo ar­tigo, in­ves­tigar a forma com que esses re­cursos são sub­traídos, ava­liar seu mon­tante em cada caso e a con­sequência prá­tica da sub­tração.

Notas:

1) Con­si­de­rando a média do ín­dice de Gini dos úl­timos dez anos, o Brasil ocupa a nona pior po­sição. Além do Brasil, os dez países mais de­si­guais in­cluem África do Sul, Bot­suana, Colômbia, Hon­duras, Le­soto, Na­míbia, Pa­namá, Re­pú­blica Centro Afri­cana e Zâmbia. (Fonte: http://databank.worldbank.org/data/reports.aspx?source=2&series=SI.POV.GINI,SI.DST.FRST.10,SI.DST.FRST.20,SI.DST.02ND.20,SI.DST.03RD.20,SI.DST.04TH.20,SI.DST.05TH.20,SI.DST.10TH.10#, con­sul­tada em no­vembro/2017.

2) Va­lores apro­xi­mados cor­res­pon­dentes a 2017.

3) Essa afir­mação apa­rece em ar­tigo as­si­nado pelo se­cre­tário de edu­cação pau­lista desde abril de 2016, re­pro­du­zido em http://www.educacao.sp.gov.br/noticias/a-sociedade-orfa. Con­sulta feita em 17/no­vembro/2017

4) Ar­gu­mentos falsos ou usados de forma to­tal­mente dis­tor­cida, tanto para des­qua­li­ficar o sis­tema edu­ca­ci­onal pú­blico como para negar os ne­ces­sá­rios re­cursos in­cluem afir­ma­ções como “di­nheiro tem, o pro­blema é que é mal apli­cado”, “há es­tudos que com­provam que um au­mento dos re­cursos não im­plica obri­ga­to­ri­a­mente em me­lhoria do apren­di­zado”, “o en­sino su­pe­rior tira re­cursos da edu­cação bá­sica e esse pro­blema pre­cisa ser re­sol­vido antes de se co­locar mais di­nheiro”, são al­guns exem­plos.

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