Publicado no Correio da Cidadania em 13/12/2017
Os gastos públicos no Brasil (incluindo gastos federais,
estaduais e municipais, cobertos por arrecadação de impostos, contribuições
sociais, taxas etc.) correspondem, grosso modo, e em uma média válida para os
últimos anos, a cerca de 33% (1) do produto interno bruto do país (PIB). Essa
arrecadação, diferentemente do que se repete insistentemente nos meios de
comunicação ligados aos interesses dos grupos dominantes, não é grande e é
insuficiente. São raríssimos os casos de países cujas arrecadações públicas
estão próximas da brasileira – em relação ao PIB – que apresentam um padrão
minimamente razoável de civilização (2).
Vejamos para onde vão aqueles 33% do PIB. Das despesas
totais da União, dos estados e dos municípios, um valor correspondente a cerca
de 12% do PIB é destinado à previdência dos setores público e privado.
Assistência social em geral (a idosos e deficientes, bolsa-família, amparo ao
trabalhador e outros) perfazem perto de 2% do PIB. Esses gastos sociais colocam
o Brasil em uma posição bem distante daquela ocupada pelos países mais
organizados (3).
Em números redondos, cerca de 5% do PIB é destinado à
educação pública e um pouco menos do que 4% à saúde pública (4). Esses
percentuais são absolutamente insuficientes para responder às necessidades do
país, colocando-o também em uma posição de grande atraso em relação aos países
organizados.
Além dessas despesas de seguridade social, educação e saúde,
que totalizam cerca de 23% do PIB nacional, há várias outras. Despesas com
segurança, transporte, urbanismo, dívida pública, justiça, defesa,
desenvolvimento social, ciência e tecnologia, cultura, meio ambiente, esportes,
poderes legislativos, lazer, agricultura, habitação estão, cada uma delas,
entre cerca de 0,5% e cerca de 2% do PIB, somando perto de 10% do PIB.
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Porcentagem do PIB
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Porcentagem dos gastos públicos**
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Previdência
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12%
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36%
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Educação
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5%
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15%
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Saúde
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4%
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12%
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Assistência social
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2%
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6%
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Demais despesas*
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10%
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30%
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* Segurança,
transporte, urbanismo, dívida pública, justiça, defesa, desenvolvimento
social, ciência e tecnologia, cultura, meio ambiente, esportes, poderes
legislativos, lazer, agricultura, habitação, entre outras.
** O total não soma 100% por causa de arredondamentos
|
Os números acima e as comparações internacionais mostram que
o Brasil carece de recursos públicos para atender à sua população de forma
adequada. Essa afirmação vai na contramão do que se repete insistentemente: que
o setor público no Brasil arrecada e gasta muito. Ora, se essa afirmação fosse
correta, não precisaria ser repetida à exaustão.
Muitas são as causas da baixa arrecadação pública
brasileira. Uma delas é a baixa alíquota máxima de imposto que incide sobre as
altas rendas (de 27,5%, quando, nos EUA, por exemplo, incluindo o IR nacional,
os IRs estaduais e municipais, coisas que aqui inexistem, a alíquota máxima
total supera 50% da renda (5)). Impostos sobre o patrimônio (grandes fortunas,
transmissão de bens e heranças) também são baixíssimos no Brasil quando
comparados com a realidade dos demais países (6).
Mas, além dos problemas com as baixas alíquotas de impostos
no Brasil e na forma injusta como eles se distribuem entre diretos e indiretos,
há uma forte “cultura” nacional contra impostos. Essa “cultura”, fruto de
insistente propaganda, é tão marcantemente forte que acaba por ser incorporada
até por aqueles que só têm a perder (e muito) com a redução dos impostos e
contribuições sociais, ou seja, a enorme maioria da população.
Não é raro ouvir aposentados, pensionistas, trabalhadores do
setor público, usuários do SUS e das escolas públicas, entre tantos outros,
repetirem e apoiarem discursos contra impostos, sem perceber que qualquer
diminuição da arrecadação, seja por redução de impostos e contribuições
sociais, seja pelo aumento de sonegação, por “incentivos fiscais” ou por
redução das alíquotas, o efeito imediato é uma redução de sua renda e uma piora
dos serviços dos quais depende em uma proporção muito maior do que a eventual
redução dos custos dos produtos e dos serviços (educação e saúde, por exemplo)
que passará a ter que comprar.
Esse tipo de cultura contra impostos, contribuições sociais
e Estado organizado reforça uma característica nacional muito negativa: a
tolerância para com a sonegação. Combinar a execução de um serviço sem recibo,
comprar ou vender um produto sem nota fiscal, passar escritura por valor
diferente do que foi realmente pago na compra de imóveis, aceitar receber “por
fora”, inventar gastos na declaração de imposto de renda ... São algumas das
práticas muito comuns usadas no Brasil (7). Muitas vezes, o argumento usado
para justificar essa prática é que parte dos impostos ou contribuições sociais
seria desviada ou roubada. Ora, considerar que se apropriar do todo é uma
justificativa moralmente aceitável para evitar que alguém roube uma parte não
parece nada honesto.
O argumento do sonegador ou dos que discursam contra
impostos dizendo que só os pagará quando os governos oferecerem serviços de
qualidade é absurdo: com os recursos disponíveis, ainda que não houvesse
caixa-dois, corrupção, superfaturamento etc. É impossível oferecer serviços
melhores do que são oferecidos (8). A lógica dessa argumentação é perversa: ao
se discursar e atuar contra impostos e contribuições sociais enquanto não
houver serviço de qualidade dificulta a arrecadação e impede que haja serviços
de qualidade, justificando o discurso contra imposto.
Como consequência da falta de fiscalização, da impunidade e
dos discursos que relativizam ou mesmo justificam a sonegação, esta atinge, no
Brasil, um valor absurdamente alto, correspondente a 10% do PIB nacional (9).
Ou seja, se ela não existisse, ainda teríamos um setor público que absorveria
um percentual do PIB bem inferior àquele absorvido nos países mais organizados;
entretanto, os problemas que teríamos seriam muito menores do que são.
Mas, finalmente, quem sonega, sonega o quê?
Quem sonega, o faz na previdência, pensões, educação, saúde,
segurança, saneamento básico e tudo o mais que é feito com (pelo menos a maior
parte) os recursos públicos. Por exemplo, o esquema de sonegação que deu origem
à operação Zelotes, desviou, segundo dados que têm sido divulgados, cerca de 20
bilhões de reais. Se esses recursos desviados tivessem os destinos médios dos
recursos públicos da tabela acima, tal valor corresponderia a cerca de 7
bilhões de reais roubados do sistema previdenciário, correspondente à renda
anual de meio milhão de aposentados que, sem ela, muitos podem simplesmente ter
morrido.
Daqueles cerca de 20 bilhões, seis bilhões iriam para a
educação. Considerando que a evasão escolar ao longo do ensino fundamental
ocorre basicamente por falta de recursos financeiros para atender adequadamente
os estudantes, aquela sonegação fez com que perto de meio milhão de crianças
possam ter deixado a escola, tornando-se adultos analfabetos. A parte do SUS
daqueles 20 bilhões é suficiente para cem milhões de consultas médicas, ou
alguns milhões de dias de internação hospitalar. Evidentemente, muitos milhares
de pessoas morreram por causa daquele desvio.
Quem sonega, sonega educação, saúde, seguridade social,
justiça, segurança, vida, moradia, transporte, democracia e muito mais e
contribui para nosso atraso educacional, para os baixos rendimentos pagos pelos
sistemas previdenciários, para a manutenção dos nossos altos índices de
mortalidade infantil. Quem defende uma política de Estado mínimo, defende a
precariedade daqueles serviços, a ausência de democracia e a garantia do
atraso. Caso os discursos dos sonegadores e defensores de um Estado mínimo
tivessem sucesso nos países com melhores indicadores sociais (educacionais, de
saúde, IDH), em pouco tempo eles se tornariam novos Brasis.
Notas:
1) Todos os valores citados podem apresentar uma pequena
variação, tanto por causa de variação de um ano para outro como de critérios
adotados. Entretanto, essas possíveis variações não comprometem as análises
feitas ou as conclusões obtidas,
2) Países cujos governos gastam entre 31% e 32% do PIB,
segundo o verbete “Government Spending” da Wikipédia, consultado em 5/12/2017,
são África do Sul, Bahrein, Botsuana, Cabo Verde, Catar, Egito, Geórgia,
Guiana, Jamaica, Libéria, Macedônia, Suazilândia, Uzbequistão e Vietnã. Países
cujos gastos são ainda inferiores àqueles percentuais, apresentam, em média e
com raríssimas exceções, indicadores sociais, culturais e de desenvolvimento
humano inferiores aos listados. O sítio https://data.oecd.org/ sistematiza
diversos dados referentes à arrecadação e despesa de governos.
3) É necessário lembrar que nos EUA as contribuições
previdenciárias e de saúde, mesmo quando compulsórias, não estão computadas, em
grande parte, dentro das contas públicas.
4) Segundo dados sistematizados pelos organismos
internacionais
(https://data.worldbank.org/indicator/SH.XPD.PUBL.ZS?name_desc=false), em 2014,
ano mais recente disponível, o Brasil investiu 3,8% do seu PIB em saúde
pública. A média mundial naquele ano era de 6%
5) Em diversos estados dos EUA, mais do que metade do
orçamento estadual provém de imposto sobre a renda.
6) Apenas um exemplo: nos EUA, país cujos endinheirados
brasileiros fingem tomar como paradigma, a alíquota máxima do imposto federal
sobre herança é de 40%. Além dele, há impostos sobre herança em nível estadual.
No Brasil, não há imposto federal sobre herança e as alíquotas estaduais não
ultrapassam os 8% - no Ceará -, sendo, em São Paulo, de 4%.
7) A BBC Brasil tem matéria, disponível em
http://www.bbc.com/portuguese/brasil-41019093, com alguns truques usados pelos
mais ricos para driblar o pagamento de impostos no Brasil.
8) Apenas para se ter uma ideia, todo o sistema público de
saúde dispõe, a valores de final de 2017, de R$ 100 por mês e por pessoa. Com
tal quantidade de recursos, nenhum sistema conseguiria prestar melhor
atendimento do que o sistema público oferece.
9) Estimativa do Sindicato Nacional dos Procuradores da
Fazenda Nacional, http://www.quantocustaobrasil.com.br/. Há estimativas
internacionais que colocam o valor total sonegado no Brasil ligeiramente abaixo
da sonegação nos EUA, apesar do PIB daquele país ser cerca de dez vezes maior,
http://blogs.reuters.com/david-cay-johnston/2011/12/13/wheres-the-fraud-mr-president/
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