Comentários sobre fundos
patrimoniais
Publicado
originalmente n’A Terra é Redonda, 23/12/2021
A
lei federal 13.800, de 4 de janeiro de 2019, promulgada pelo atual governo, cria
a figura jurídica de um fundo patrimonial administrado por uma organização
gestora. Essa organização gestora pode/deve utilizar os recursos do fundo
patrimonial, ou mais especificamente, os retornos dos investimentos feitos com
eles, em atividades ligadas à educação, pesquisa científica e tecnológica,
cultura, entre outras. Essas atividades devem ser desenvolvidas em e por
instituições públicas, universidades entre elas. Os recursos devem ser
destinados a finalidades definidas previamente; ou seja, a instituição pública
onde as atividades ocorrerão não pode decidir livre e autonomamente as
atividades executadas.
A entidade gestora
pode comercializar direitos de propriedade intelectual e até mesmo a marca da
instituição pública, incorporando os resultados financeiros ao seu patrimônio.
Em resumo, a organização gestora, uma instituição privada, terá o poder de decidir
as atividades a serem executadas por instituições públicas e comercializar o
resultado obtido, sendo que suas decisões são tomadas com base em interesses de
pessoas físicas e jurídicas de interesse privado.
Essa lei talvez
seja um dos fatores a fazer com que a ideia de um fundo patrimonial para a USP
ressurja mais uma vez. Como a lei citada confunde esse fundo com fundos
existentes em algumas poucas e pequenas universidades privadas dos EUA, lá chamados
de endowments (refletindo o fato que tiveram origem em doações), é
necessário lembrar alguns fatos que ocorrem naquele e em outros países e
interpretá-los.
1) Para que servem os fundos patrimoniais. Embora
haja casos nos quais um determinado fundo é gasto em sua totalidade, um
objetivo típico dos fundos patrimoniais é destinar apenas a remuneração dos
investimentos feitos, sem comprometer o principal. Assim, para que tais fundos
tenham alguma relevância prática, os rendimentos gerados pelos investimentos
feitos não devem ser insignificantes quando comparados com os orçamentos das
instituições.
2) Onde existem. No setor educacional, fundos
patrimoniais com essa característica existem apenas em algumas das pequenas universidades
privadas dos EUA. Na enorme maioria das instituições de ensino superior daquele
país, públicas ou privadas, tais fundos não existem ou são insignificantes, ou
seja, as remunerações obtidas nas aplicações financeiras e nos investimentos
não têm qualquer relevância no financiamento das instituições. Situação similar
ocorre nos demais países.
3)
Fundos patrimoniais e as instituições
públicas e privadas nos EUA. Para se ter uma ideia do significado desses
fundos nos EUA, é necessário lembrar que 3/4 dos estudantes do nível superior daquele
país estão matriculados em instituições públicas, entre elas aquelas que
combinam altíssimo desempenho científico, cultural, artístico e tecnológico com
a formação de grande quantidade de profissionais. Da quarta parte restante dos
estudantes dos EUA, a grande maioria está matriculada em instituições privadas
cujos fundos patrimoniais, quando existentes, são irrisórios.
4) Endowments significativos só existem
em poucas e pequenas instituições privadas da elite dos EUA. As dez
universidades privadas mais ricas dos EUA detêm perto da metade da totalidade dos
fundos patrimoniais, mas apenas 0,5% dos estudantes (graduação e pós-graduação)
daquele país. Todas essas têm fundos patrimoniais superiores a um milhão de
dólares por estudante, o que faz com que seus rendimentos sejam expressivos
quando comparados com o custo de seu funcionamento.
5)
Endowmnents em universidades
públicas nos EUA. Entre as universidades públicas daquele país, raros são
os casos de fundos patrimoniais significativos. Por exemplo, a Universidade da
Califórnia, com quase 300 mil alunos, tem um fundo patrimonial menor do que a
metade daquele de Harvard, com cerca de 20 mil alunos; ou seja, por estudante o
endowment da Universidade da Califórnia é da ordem de 3% daquele de
Harvard. Na Universidade do Estado da Califórnia, com meio milhão de alunos, o
fundo patrimonial por estudante é da ordem da milésima parte daquele do
conjunto das instituições privadas mais ricas. Situação similar ocorre nas duas
grandes universidades públicas do estado de Nova Iorque, a State University e a
City University, com cerca de 700 mil alunos no conjunto. No global, o fundo
patrimonial por matrícula nas universidades públicas dos EUA está entre 20 e 25
mil dólares, com raríssimas instituições tendo valores acima de 100 mil
dólares. Consequentemente, os ganhos financeiros gerados pelos fundos
patrimoniais das universidades públicas dos EUA é insignificante quando
comparados com seus orçamentos.
6) Recursos das universidades públicas dos EUA e da USP. Embora a USP não tenha um fundo patrimonial nos moldes da lei 13.800, ela tem recursos acumulados em caixa que, comparados com seu orçamento, são superiores ou mesmo muito superiores à relação entre os fundos patrimoniais e os orçamentos de universidades públicas dos EUA.
Figura – Número de matrículas em
graduação e pós-graduação em instituições dos EUA e fundo patrimonial por
estudante, em dólares. À direita da linha vertical estão instituições com mais
do que 25 mil alunos, aproximadamente; acima da linha horizontal, instituições
cujos fundos patrimoniais por aluno excedem 30.000 dólares. Círculos vazios
representam instituições privadas; círculos cheios, instituições públicas. Não
foram incluídas instituições com menos do que 10 mil estudantes; foram
incluídas apenass uma pequena parte das instituições públicas com 10 mil alunos
ou mais.
As instituições privadas que têm
fundo patrimonial significativo têm poucos alunos e ocupam o retângulo superior
esquerdo. As instituições públicas ocupam o retângulo inferior direito,
correspondente a grande quantidade de alunos e pequenos endowments por matrícula.
Figura construído com base em
fontes consultadas entre outubro e dezembro de 2021.
8) Vantagens financeiras de doadores. Nos EUA, além do imposto de renda federal, há impostos de renda estaduais
e, em alguns casos, municipais. (A alíquota máxima federal é de 37%, após uma
redução do valor anterior ao período Trump, que era de 39,6%.) Combinando
impostos federal, estaduais e locais, a alíquota máxima pode superar os 50% da
faixa mais alta da renda[i]
(no Brasil, ela é de 27,5%). Como doações a certas entidades são abatidas da
renda, uma doação pode ser financeiramente vantajosa, havendo vários truques
que podem transformar uma doação em ganho de renda, não em reduções[ii].
9) Fundos patrimoniais em outros países que não os EUA. Como já afirmado, fundos patrimoniais em outros países, nos moldes
encontrados no caso das pequenas universidades privadas dos EUA, são muito
raros e têm valores insignificantes. Mesmo nas duas universidades britânicas que
têm tais fundos[iii], os valores por estudante
estão muito abaixo dos verificados naquelas universidades das elites e para as
elites dos EUA. Nos casos das demais universidades do Reinou Unido, os valores
não excedem uma centésima parte do que se verifica nos EUA. No caso das
universidades francesas, como regra, a situação é ainda menos significativa que
no Reino Unido.
10) Por que nos EUA? Embora doações façam parte da cultura dos EUA, e por isso recebem até
mesmo incentivos fiscais, não é apenas por benevolência que elas são feitas.
Além das vantagens financeiras já citadas, é uma forma de se aproximar de
outras pessoas que representam o poder econômico e político ou se inserir em um
meio sofisticado, o que explica as altas doações para museus e outras
organizações artísticas. Assim, doações podem se transformar em uma espécie de
passaporte. Não por acaso, grande parte das universidades de elite têm nomes
que coincidem com os sobrenomes dos chamados “barões ladrões”[iv],
bilionários que procuravam embelezar seus nomes e deixar para seus herdeiros
não apenas as montanhas de dinheiro que conseguiram ganhar.
11) Império dos fake news. No Brasil, em
período recente, as mentiras foram relativizadas e liberadas com tal
intensidade (sempre que forem do interesse dos grupos economicamente
dominantes, claro), que passaram a ocupar espaços antes inimagináveis. A Medida
Provisória 851/2018, a que deu origem à citada lei 13.800[v], que passou a permitir que
o setor privado possa se beneficiar das universidades e de outras instituições
públicas, afirma, em sua justificativa, que “a experiência internacional
mostra que fundos patrimoniais representam fonte importante de receita para
instituições públicas, em especial doações para universidades e
entidades de conservação do patrimônio histórico são extremamente importantes em
outros países. Destacam-se, nesse quesito, os Estados Unidos, onde as suas mais
importantes universidades possuem fundos bilionários. A Universidade de
Harvard, por exemplo, possui um fundo cujo patrimônio é estimado em US$ 37,6
bilhões. Outras universidades de primeira linha, como Stanford, Princeton e
Yale, administram fundos com patrimônios estimados entre US$ 20 e 25 bilhões.” A
quantidade de manipulações nesse pequeno texto é notável. A experiência
internacional não mostra isso; ao contrário, ela mostra que as instituições
públicas são financiadas pelo setor público com recursos públicos originários
de impostos. A expressão em outros países se refere apenas aos EUA. As
instituições citadas não são públicas, são privadas. Não há dúvidas que
as universidades da elite econômica norte americana são muito densas, tendo
indicadores muito significativos quando relativizados aos seus pequenos
tamanhos; entretanto, classificá-las como as mais importantes universidades
denota um viés de análise e uma ignorância quanto ao tamanho e qualidade dos
universidades pública daquele país.
Uma
conclusão possível
Fundos
patrimoniais que realmente beneficiem instituições às quais estão ligados é
alguma coisa existente apenas no caso de entidades privadas da elite dos EUA. A
inexistência ou insignificância de tais fundos em instituições públicas daquele
país é que com estas não é possível fazer negócios, como definir livremente o
destino dos recursos[vi].
Doações para instituições privadas podem estar associados à aquisição de uma
espécie de passaporte para uma pessoa ser admitida em um determinado meio, em
especial um meio que esteja ligado a seus interesses pessoais e de classe.
Incentivos fiscais
fazem com que aqueles que, de fato, arquem com as doações feitas sejam os
demais contribuintes, que devem compensar a perda de receitas provocada pelas
doações.
Este texto é
apenas um recorte de uma realidade mais complexa, mas talvez seja suficiente
para deixar claro fundos patrimoniais não respondem a nenhum interesse da
maioria das pessoas, respondendo apenas ao interesse de um pequeno grupo
detentor e controlador de recursos financeiros
[i] Por exemplo, uma
pessoa com altíssima renda na cidade de Nova Iorque estará sujeita a uma
alíquota máxima federal de 37%, mais 10,9% correspondente à alíquota máxima
estadual e 3,9% municipal.
[ii] Seguem alguns
exemplos de truques possíveis ouvidos ou lidos pelo autor. (a) Doar parte de um
grande terreno para que uma universidade construa um novo prédio, levando a uma
vantajosa valorização do restante do imóvel; a doação aumentou o patrimônio
daquela pessoa que doou. (b) Um milionário que investe no setor de lutas funda
uma entidade beneficente destinada a promover a atividades junto a comunidades
carentes e a usa para selecionar lutadores com os quais assinará contratos
vantajosos. (c) Um bem, cujo valor pelo qual foi adquirido é, digamos, 30
unidades de dinheiro, é doado como se valesse 100 e isso é aceito pela entidade
que o recebe, sendo esse valor abatido da renda tributável do doador. Essa
pessoa, que doou uma coisa que vale 30, deixará de pagar 37 de imposto de renda
federal.
[iii]
Endowments parecem existir
apenas em duas universidades da Inglaterra, Cambridge e Oxford, mas não nas
instituições de outros países do Reino
Unido.
[iv] Veja o verbete
“Robber baron (industrialist)”, da versão em inglês da Wikipedia
[v] A citada MP pode
ser consultada em
www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=node0nvw9go101w9ukqbm8ok9be209791936.node0?codteor=1696057&filename=MPV+851/2018
[vi] Há casos de
doações para universidades públicas associadas a práticas como vincular uma
doação à aceitação da admissão de uma pessoa em particular, beneficiando
doadores, familiares e amigos; veja, p. ex., www.nbcnews.com/news/us-news/university-california-admitted-dozens-wealthy-white-students-favors-audit-finds-n1240766. Essa prática não
é ilegal em instituições privadas.
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