Publicado originalmente n'A Terra é Redonda em 2/8/2021
Por volta de 1990, o Brasil chegou a ocupar a pior
posição no que diz respeito à concentração de renda. Apesar das mudanças
ocorridas desde então, ainda estamos entre os países mais desiguais, variando
entre a 4ª pior situação quando o indicador é a relação entre as rendas dos 20%
mais ricos e a dos 20% mais pobres, e perto da 15ª pior, se o indicador é o
índice de Gini. Essa realidade descrita acima ainda não incorporou o ocorrido
desde a posse do governo Temer, como o desmonte do estado, o neoliberalismo
extremado, a alta desenfreada do desemprego ou a intensificação da precarização
do trabalho, entre outros problemas. Mesmo que não houvesse uma epidemia
pessimamente enfrentada, nossa desigualdade estaria voltando a ser a pior do
mundo.
A
combinação de muitos fatores explica essa situação, como, entre outros, as
diferenças urbano/rural, a política de concentração da propriedade da terra, os
baixos níveis educacionais, a política de impostos e contribuições sociais, a herança
colonial e as diferenças regionais, étnicas e de gênero. O objetivo deste
artigo é examinar com que intensidade a desigualdade de renda cria um sistema
educacional desigual e com que intensidade um sistema educacional desigual contribui
para perenizar a desigualdade na distribuição de renda.
A
renda de um adulto depende da escolaridade
A renda
de uma pessoa depende de muitos fatores, entre eles, de sua escolaridade. A
figura 1 ilustra essa dependência: pessoas com 4 anos ou menos de escolaridade
recebem, em média, um salário mínimo ou menos. Uma renda individual tipicamente
superior a um salário mínimo por mês é uma característica de pessoas com pelo
menos o ensino fundamental completo.
A renda
de uma pessoa cresce na medida em que cresce a escolaridade, chegando a uma
média da ordem de cinco vezes o salário mínimo no grupo formado por aqueles com
16 anos ou mais de escolaridade, vale dizer, com ensino superior completo.
Figura 1 – Renda mensal média das pessoas entre
30 e 65 anos de idade segundo o número de anos completos de escolaridade. (Todos
os gráficos deste trabalho foram elaborados com base nos microdados do PNAD de
2019.)
Há várias outras formas
de examinar a dependência da renda com a escolarização. Por exemplo, mais do
que metade das pessoas entre as 10% com maiores rendas (mais do que 4 salários
mínimos ou mais por mês) tem pelo menos o ensino superior completo. Quando
consideramos o grupo formado pelos 1% mais ricos, ou seja, os que ganham quinze
salários mínimos ou mais por mês, praticamente ninguém tem escolaridade
inferior a 16 anos completos.
Essa dependência da renda
com a escolaridade é uma das componentes do círculo vicioso que relaciona
desigualdade na educação com a desigualdade na distribuição de renda.
A
escolaridade de uma criança ou um jovem depende da renda
O perverso
círculo vicioso se fecha na dependência da escolaridade de uma criança
ou um jovem com a renda domiciliar. Vamos ver isso pela exclusão escolar,
mostrada na figura 2.
O
abandono da escola antes da conclusão do ensino fundamental, apesar de sua
obrigatoriedade, é muito grande, afetando da ordem de uma em cada sete ou oito
crianças. Além de alto, esse abandono, como seria de se esperar, não é uniforme
na população, sendo muito concentrado nos grupos mais desfavorecido
economicamente. Enquanto no grupo dos domicílios com pessoas de 21 anos de
idade que estão entre os 10% mais ricos (renda per capita superior a cerca de
dois salários mínimos, ou R$ 2005, segundo dados da PNAD analisada), menos
do que 1% das pessoas com aquela idade não completou os 9 anos do ensino fundamental
(veja figura 2). No outro extremo, o grupo formado pelos 10% mais pobres, cuja
renda domiciliar por pessoa é inferior a R$ 160 por mês, quase 30% das
crianças ou jovens não conclui o ensino fundamental.
Figura 2 – Porcentagem das pessoas com 21 anos de idade que não completaram o ensino fundamental segundo a faixa de renda domiciliar per capita. Cada grupo tem 10% da população com aquela idade. Os valores indicados na abscissa correspondem aos limites da renda de cada grupo.
Quando
examinamos o abandono escolar antes do final do ensino médio, o que aparece na
figura 3, a situação se repete. Na média, um terço da população com 25 anos de
idade não havia completado o ensino médio em 2019. Entre as pessoas nessa faixa
etária pertencentes ao grupo formado pelos 10% com maiores rendas domiciliares
per capita (mais de dois salários mínimos por mês), apenas 3,5% não completaram
o ensino médio. Na medida em que analisamos os grupos com menores rendas, o
abandono cresce. Entre os 30% mais pobres, aqueles cuja renda domiciliar per
capita estava abaixo de R$ 450 em 2019 (cerca de meio salário mínimo), não
acabar o ensino médio é a regra; exceção é concluir esse nível escolar.
Figura 3 - Porcentagem de pessoas com
menos do que 12 anos completos de escolaridade aos 25 anos de idade segundo a faixa
renda domiciliar per capita. Cada grupo corresponde a 10% dos domicílios.
Os
números contam apenas parte da história: a realidade é pior
Os
indicadores analisados referem-se apenas à educação escolar medida em anos de
permanência na escola. Mas além dessa medida, há de se considerar a duração do
dia escolar, a qualidade do atendimento oferecido pelas escolas, o curso
frequentado nos casos do ensino médio e superior, o acesso a outros recursos
educacionais, como aulas particulares, acompanhamento pelos responsáveis do
desenvolvimento escolar, cursos de idiomas, atividades esportivas, atividades e
viagens culturais, acompanhamento psicológico, uso no cotidiano do conhecimento
escolar etc. Esses fatores extraescolares, ainda mais dependentes da renda do
que a frequência escolar, intensificam, e muito, as diferenças educacionais das
crianças e jovens.
Esses recursos
extraescolares são existentes apenas nos segmentos economicamente mais
favorecidos. Nos segmentos mais pobres, os únicos recursos educacionais aos
quais uma criança tem acesso são aqueles encontrados nas escolas e os
investimentos totais em educação podem ficar abaixo de 20 mil reais ao longo de
toda a vida. Nos segmentos mais ricos, incluindo gastos educacionais
extraescolares, os investimentos ao longo da vida podem ir além ou muito além
de meio milhão de reais.
Conclusão
A renda
de uma pessoa, depois de deixar o sistema educacional e ser incluída na força
de trabalho de um país, não depende apenas de sua escolaridade, mesmo que essa
renda seja apenas do trabalho. Ela depende de suas relações sociais, dos
amigos, conhecidos e familiares. Mas os perversos sistemas econômico e
educacional brasileiros não descuidou desse aspecto e nossas escolas também
segregam economicamente, fazendo com que crianças pobres estudem nas mesmas
escolas que as crianças mais ricas.
Se hoje
temos uma das piores distribuições de renda de todo mundo é porque nosso
sistema educacional, no passado, contribuiu para isso, formando de maneira
muito desigual a população que hoje faz parte da força de trabalho do país. Como
o país continua a repetir essa receita, o futuro também será de grande
desigualdade: nosso sistema educacional está construindo, hoje, a desigualdade
do futuro.
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