Sobre financiamento eleitoral
Publicado originalmente n'A Terra é Redonda em 19/5/2021, aqui
Como a questão do financiamento eleitoral e partidário vai voltar, segue uma coleção de fatos e argumentos sobre o tema[i].
Financiamento por empresas
1) A legislação eleitoral brasileira permitia, até meados de
2015, que empresas fizessem doações para campanhas eleitorais, as quais
poderiam chegar a 2% de seu faturamento anual. São vários os absurdos daquela
norma, criada no final da década de 1990, período em que tudo podia ser
considerado – e deveria se transformar em – mercadoria. Ora, uma empresa não é
um ente político dotado de ideologia, crenças, preferências etc. Essas coisas
são características humanas e, pela Constituição, características apenas de
pessoas física. Eleições não deveriam ser transformadas em mercadoria, com
participação financeira de empresas.
2) Deve-se notar que quem fazia a doação era
a empresa – não seus donos, acionistas, diretores etc., que podiam também
financiar candidatos a cargos eletivos na qualidade de pessoas físicas. Portanto,
as despesas iam para a planilha de custos. Como acontece com todos os custos de
uma empresa (salários, impostos, aluguéis, insumos etc.), aquelas despesas são
incluídas nos preços dos produtos e serviços. Portanto, quem de fato financia
as campanhas políticas decididas pelos donos e altos dirigentes de uma empresa são
os fregueses, consumidores, clientes, usuários, hóspedes, pacientes,
passageiros etc., sem sequer saber quem estavam elegendo.
3) Os
valores que poderiam ser destinados ao financiamento de campanhas e partidos, que
eram então limitados a 2% do faturamento anual de uma empresa, são altíssimos;
o faturamento total das empresas de um país é medido na mesma escala de seu
PIB. Ou seja, as empresas tinham um poder eleitoral mais do que suficiente para
eleger quantas pessoas quisessem e o efeito de argumentos, participação e
militância políticas por pessoas se diluíam nesse mar de recursos. Assim, as
empresas, seus acionistas e proprietários, além de serem donos e donas do país,
mandavam nele.
4) A
atual legislação alterou aquela situação, depois de uma decisão do STF que reconheceu
que empresas não podem ter vontade política, portanto, nem participação. Mas o
tema poderá voltar. E, infelizmente, há muitos apoios à volta do financiamento
por empresas. Muitos desses apoios, inclusive entre partidos e grupos ditos
progressistas, fazem referência a uma versão aparentemente, mas não
verdadeiramente, atenuada daquela forma de financiamento.
Financiamento
por pessoas físicas
5) O
financiamento por pessoa física é limitado a 10% da renda anual. Tal regra faz
com que o poder político seja tão maior quanto maior for o poder econômico das
pessoas, nos moldes da Constituição de 1824, aquela que é ridicularizada nas
escolas por afirmar que o acesso ao direito de voto e a cargo eletivo dependia
da renda. Exatamente como é hoje! Essa dependência do poder político com a
renda da pessoa é totalmente incompatível com uma democracia.
6) A
permissão que pessoas físicas doem até 10% de suas rendas é um caminho fácil
para a burla da proibição do financiamento por empresas, pois seus
proprietários e suas altas direções tem o poder de destinar recursos às suas próprias
rendas pessoais e transferi-los aos seus candidatos e partidos preferidos. Também
há a possibilidade de se transferir recursos de uma empresa a outras pessoas, “laranjas”
ou não. Tais práticas fazem com que as despesas eleitorais continuem entrando
nas planilhas de custo das empresas e, portanto, sendo pagas pelos
consumidores, clientes, pacientes, usuários dos serviços etc., mantendo os
altos custos das campanhas e o poder da publicidade, reduzindo, como já dito, a
quase nada o poder de projetos e de militâncias políticas.
7) Candidatos
podem usar recursos próprios em quantidade que independe de sua renda! Claro
que esses recursos próprios podem chegar aos bolsos de um candidato por meio de
uma doação particular, um negócio privado ou outro caminho qualquer. Isso
transformaria uma eleição em um tipo de investimento.
8) A
lei impõe limites para o total de gastos. Mas os limites são tão enormemente
altos que as despesas realmente feitas pelos candidatos ficam muito aquém
deles. São muito raros os casos de candidatos cujos gastos registrados nos
tribunais eleitorais chegaram próximo aos limites legais. Apenas para dar uma
ideia desses valores: os limites nas eleições municipais de São Paulo em 2020
eram superiores a 50 milhões no caso de prefeito e 3,6 milhões, no caso de
vereadores. Por que os limites são assim tão altos? Quem ganha com esses
“limites”? A resposta é óbvia: os grupos economicamente dominantes, as pessoas
muito ricas e que podem se autofinanciar etc. E quem perde? A resposta também é
óbvia: os trabalhadores comuns, os grupos políticos populares, as minorias
econômicas etc.
As
atuais regras que limitam e controlam o financiamento do processo político,
além de muito fracas, podem ser facilmente dribladas de forma totalmente legal.
Essas regras levaram a um enorme encarecimento das campanhas e, como já dito e
repetido, reduzem muito o peso das disputas políticas com base nos programas.
Não é
com ingredientes como esses que se constrói uma democracia. Empresas jamais
deveriam participar de financiamento político, pois não são entidades dotadas
de vontade, ideologia, crenças etc. e que quem pagará a conta serão as pessoas
que dependem dos bens e serviços produzidos por elas. Com esse mecanismo, as
pessoas comuns são obrigadas a financiar, sem saber, candidatos que jamais
financiariam conscientemente.
Contribuições
de pessoas físicas não devem ser relacionadas com suas próprias rendas, mas,
sim, com algum referencial baseado na renda per capita do país, para, pelo
menos, permitir que um grande contingente de pessoas possa participar do
processo político com algum significado eleitoral. Recursos privados deveriam
ser limitados a valores razoáveis, compatíveis com a realidade econômica das
pessoas comuns, não com a renda de doadores e doadoras, e as irregularidades punidas
nos dois extremos: o das pessoas que fazem doações irregulares (inclusive por
meio disfarçados) e o das que recebem.
[i]
Esses fatos e argumentos foram usados em vários artigos publicados sobre o tema
em Caros Amigos ,
Correio da Cidadania e Carta Capital (site) e incluído em bibliografia do STF
sobre o tema (stf.jus.br/arquivo/cms/bibliotecaConsultaProdutoBibliotecaBibliografia/anexo/Financiamento_campanha_eleitoral.pdf)
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