Fundo patrimonial: o que é isso?
Jornal
da USP, 13/12/2018
Embora a ideia de um fundo patrimonial destinado a uma
instituição pública de ensino superior, ou a algumas de suas unidades, tenha
surgido várias vezes ao longo do tempo, tal proposta vem ganhando corpo mais
recentemente, tanto em declarações verbais, como em reportagens, artigos
assinados em jornais, etc. Entretanto, todas as análises são muito superficiais
e, assim, cada pessoa acaba por fazer a imagem que quer sobre tal tipo de
fundo, sem ter ideia sobre suas características, suas origens, como funcionam
nos diversos países, onde existem e onde não existem, suas possibilidades, os
valores envolvidos etc.
O que são tais fundos e onde eles existem?
Fundos patrimoniais são recursos,
principalmente monetários, que estão à disposição de uma instituição para que
esta destine seus rendimentos e eventuais novos aportes para determinadas
funções bem definidas, procurando-se manter intacto o valor do patrimônio.
Esses fundos são comumente chamados de endowments, em
particular quando se referem aos recursos cuja origem é fruto de doações.
Como regra, fundos patrimoniais de
universidades que contêm com valores significativos, considerando-se o tamanho
das instituições, são típicos apenas nas pequenas e caras instituições privadas
dos EUA. Nas grandes instituições privadas e nas universidades públicas daquele
país, esses fundos são, comparativamente, muito menores ou, mesmo,
inexistentes.
Nos demais países, com raras
exceções, não existem tais fundos. Eventuais recursos monetários colocados à
disposição de uma instituição pública pelo governo que a mantém, com destinação
bem definida, podem parecer com os endowments das
pequenas instituições privadas norte-americanas, mas têm caráter bem diferente.
Vejamos alguns exemplos. Nos EUA, a
enorme maioria dos estudantes de nível superior está matriculada em
instituições públicas[i]. Dos matriculados em instituições
privadas, apenas uma pequena parte está em alguma das seletas instituições que
se dedicam a formar os quadros dominantes daquele país[ii],
bastante pequenas em termos do número de estudantes, mas com enormes fundos
patrimoniais (os tais endowments). Por exemplo, a
Universidade de Princeton, com pouco mais do que cinco mil alunos de graduação
e menos do que três mil de pós, portanto menor do que a FFLCH ou a Escola
Politécnica da USP, tem um fundo patrimonial de 25 bilhões de dólares, ou 3
milhões por aluno. As demais pequenas universidades privadas de elite dos EUA
também têm fundos patrimoniais por estudante aproximadamente da mesma ordem de
magnitude.
Fundos
patrimoniais de algumas instituições de ensino superior e pesquisa
* Oxford é financiada por
recursos públicos, mas a legislação permite que ela, apenas por decisões
internas, se transforme em uma instituição totalmente privada não estatal.
Nos demais países, fundos patrimoniais de universidades
públicas, quando existem, são bem menores do que aqueles das similares dos EUA.
Além disso, os poucos que existem, têm, como regra, origens e finalidades
diferentes, sendo, muitas vezes, apenas recursos disponibilizados às
instituições pelos governos mantenedores.
Em resumo, fundos patrimoniais
são coisas típicas das pequenas e caras universidades privadas nos EUA.
Qual a origem dos fundos patrimoniais nos EUA?
Uma resposta poderia ser: doações
feitas por pessoas muito ricas, frequentemente as que lá se formaram, que
permitiram a criação de enormes patrimônios à disposição daquelas pequenas
instituições, que, depois, foram mantidas e engrossadas por novas doações.
Embora correta, essa resposta não explica tudo; alguns outros fatos precisam
ser considerados.
Os valores máximos dos impostos sobre heranças e doações nos
EUA, aqueles que atingem os grandes patrimônios, ficaram entre meados da década
de 1930 e aproximadamente 1980, próximos dos 80%[iii].
Como ocorre com impostos diretos, o imposto sobre herança é aplicado por
faixas: pequenos valores são transferidos aos herdeiros sem qualquer taxação;
valores em uma faixa intermediária são taxados com determinada alíquota; uma
faixa superior é taxada mais intensamente etc. Finalmente, valores que excedem
determinado limite são taxados com alíquota máxima. Assim, quando algum
bilionário doa, a parte doada é a que seria taxada pela alíquota máxima.
Consequentemente, o efeito sobre o patrimônio a ser transferido a herdeiros
pode ser muito pequeno. Além disso, os termos de doação podem incluir vantagens
materiais tanto ao doador como a seus herdeiros.
Muitas universidades de ponta
dos EUA foram constituídas, no século XIX, por doações feitas pelos chamados
“barões ladrões”, pessoas que enriqueceram muito usando métodos inescrupulosos
e ilegais. Talvez essa seja outra das vantagens de se fazer uma doação:
melhorar uma imagem pouco merecedora de elogios e, consequentemente, transferir
essa imagem aos descendentes. Perde-se um pouco de dinheiro, mas ganha-se algum
prestígio.
Um outro aspecto importante a se
examinar é o fato que as doações para instituições privadas são muitas vezes
maiores do que as doações para instituições públicas. Uma razão para isso é que
com as primeiras é possível negociar as condições da doação, definindo o
destino do patrimônio doado, o que não ocorre com as segundas. Essa
possibilidade pode compensar amplamente a perda de patrimônio. (Quando as
condições de doação são absurdas, há mecanismos legais, nos EUA, que permitem
corrigir isso sem perder os recursos doados.) Por exemplo, alguém doa uma
parte de um grande terreno para uma universidade construir uma nova unidade de
ensino e pesquisa, o que valoriza a outra parte não doada.
Como, nos EUA, muitas doações a fundos de universidades são
consideradas ações de caridade[iv],
pode haver, ainda, vantagens tributárias significativas.
Vale a pena ter um fundo patrimonial em uma instituição pública como a USP?
A USP já teve enormes reservas financeiras de livre uso: em
2011, por exemplo, elas atingiram o incrível valor atualizado de 6 bilhões de
reais. Relativizando-o pelo tamanho das instituições – número de alunos, de
professores e funcionários ou do orçamento – tal fundo é muito maior do que os
observados mesmo nas universidades públicas dos EUA. Por exemplo, aqueles
recursos correspondem a um ano inteiro de orçamento, enquanto o sistema da
Universidade da Califórnia, uma das instituições públicas dos EUA com maior
fundo patrimonial (tanto em termos absolutos como relativizado por seu
tamanho), tem um fundo correspondente a cerca de terça parte do seu orçamento[v].
Entretanto, a USP não soube
utilizar tais recursos de forma adequada e quase conseguiu esgotá-los em poucos
anos, sem qualquer contribuição significativa ao desenvolvimento acadêmico da
instituição. Atualmente, esse fundo, embora reduzido a cerca da quinta parte do
orçamento anual da universidade, ainda é relativamente maior do que existe nas
universidades públicas dos EUA e muito maior do que ocorre nos demais países.
Há algum plano academicamente justificável para seu destino? Não parece.
A USP também tem uma pequena
fonte de recursos externos a seus orçamentos cuja origem é os patrimônios de
pessoas que falecem sem deixar herdeiros e sem definir destino a eles, as
chamadas heranças vacantes. Tais recursos, existentes por muito tempo, poderiam
ter sido usados para a criação de um fundo patrimonial com algum destino bem
definido. Não foram.
Finalmente, é bom observar que,
no Brasil, diferentemente do que se afirma com frequência, doações têm sido
defendidas como formas de captar recursos do setor privado, mas, na prática,
examinando as poucas existentes, parecem formas que o setor privado tem de
capt(ur)ar a capacidade produtiva da universidade.
Portanto, cabe a pergunta: a USP
ou suas unidades devem ter fundos financeiros à disposição?
[i] Cerca
de 75% das matrículas em graduação nos EUA são em instituições públicas,
exatamente o oposto do que ocorre no Brasil, onde cerca de 75% das matrículas
são em instituições privadas. Dos estudantes em instituições privadas, apenas
uma pequena parte está matriculada em nas universidades ditas de ponta, como
Harvard, Stanford, Yale, Duke etc.
[ii] Número
de presidentes norte americanos formados por algumas universidades privadas:
Harvard, 5; Pensilvânia, 2; Princeton e Yale, um cada.
[iii] Como
praticamente todos os impostos diretos, os impostos sobre a renda e sobre
heranças têm uma faixa isenta, seguida de faixas de valores crescentes com
alíquotas também crescente. No período citado, meados da década de 1930 até
1980, as alíquotas mais altas em ambos os impostos eram da ordem de 80%.
[iv] O
artigo de antigo professor de políticas públicas na Universidade da Califórnia
em Berkeley, Robert Reich, analisa, com alguma ironia, as caridosas doações
feitas por bilionários para instituições muito ricas, como são algumas
universidades privadas dos EUA, https://www.salon.com/2013/12/14/the_wealthy_give_to_charity_elite_schools_and_operas_partner/
[v] Fundo
patrimonial é dinheiro em caixa enquanto orçamento é dinheiro gasto ao longo de
um período. Portanto, a comparação deve ser feita com bastante cuidado.
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