9 de ago. de 2016

Como “desidratar” uma universidade

Publicado originalmente no sítio de Caros Amigos em 4/agosto/2016

A longa crise paulista
A crise econômica que se abateu sobre o país nos anos finais da ditadura militar, iniciando-se por volta de 1979 ou 1980, e que deu origem à expressão “a década perdida”, durou, de fato, muito mais do que uma década. No caso específico do Estado de São Paulo, a “década perdida” durou cerca de 25 anos, indo até 2004 ou 2005, período marcado por uma longa estagnação do PIB per capita (veja Figura 1). Esse período de estagnação econômica do estado de São Paulo afetou a arrecadação pública e se refletiu em diversos setores, entre eles, a educação pública em todos os níveis.




A renda per capita paulista só voltou a crescer por volta de 2005, recuperando seu valor de 1980 um ou dois anos depois. A combinação do crescimento da renda per capita com o crescimento da população fez com que a arrecadação pública estadual, em particular o ICMS, apresentasse um crescimento muito intenso depois de 2005. Consequentemente, os recursos destinados às universidades paulistas começaram a crescer em termos reais. Entre 2005 e 2010, aproximadamente, as liberações financeiras do governo estadual para a Universidade de São Paulo cresceram, em termos reais, mais do que 50%, atingindo, a valores atualizados para 2016, um patamar próximo de 5 bilhões de reais ao ano, como mostrado na Figura 2.



Uma oportunidade única para a USP
Essa recuperação econômica ofereceu uma oportunidade única para que a Universidade de São Paulo, depois de duas décadas e meia de crise, promovesse uma recuperação dos atrasos acumulados e planejasse o atingimento de um novo patamar.

Realmente, houve alguma recuperação, a qual pode ser ilustrada pelo número de docentes que, depois de ser reduzido para 4,7 mil em 2004, voltou a recuperar seu patamar de 1990, apresentando até mesmo um pequeno crescimento, ao atingir seis mil em 2014. (Entretanto, é necessário observar que parte desse crescimento ou recuperação ocorreu na forma de absorção de instituição já existente, a faculdade de engenharia e o colégio técnico de Lorena, e da criação de novas unidades. As unidades de ensino e pesquisa que já existiam em 1990 tiveram uma redução do número de docentes.)
Mas grande parte dos gastos financeiros feitos pela Universidade de São Paulo na última década parece não ter ocorrido de forma academicamente orientada: o crescimento do orçamento deu origem a várias ações (e inações) que parecem não se conectar nem fazer parte de um projeto acadêmico.

    Ações desconexas?
    Uma das ações que parecem não ter base acadêmica foi, simplesmente, guardar recursos no cofre. No período em que se iniciou a recuperação econômica no estado de São Paulo, entre 2003 e 2005, a USP começou a fechar o ano com recursos cada vez maiores em caixa, cujos valores são mostrados na Figura 3. Quando a administração da universidade era questionada quanto à razão de guardar recursos em volumes tão grandes, a justificativa era “prevenir para o caso de uma crise”, ou alguma outra explicação equivalente. Mas as explicações eram pouco aceitáveis. Primeiro, porque a presença do ensino público superior paulista é uma das mais baixas do país, qualquer que seja o critério para medi-la (proporção dos estudantes no setor privado, vagas para ingresso no setor público em relação ao número de concluintes do ensino médio, matrículas no ensino superior público em relação à população etc.), e aumentos sustentados de recursos deveriam ser usados para reduzir a defasagem em relação aos demais estados. Além disso, os volumes de recursos acumulados assumiram proporções enormes, chegando a um valor equivalente a um ano inteiro de orçamento, valor pouco justificável para uma universidade pública. Finalmente, a evidência definitiva que as reservas financeiras não tinham como destino a superação de uma eventual crise é o fato que quando esta apareceu, elas não foram usadas, inclusive porque parte delas já havia sido gasta, e de forma alheia a um projeto acadêmico.



Outra ação estranha foi a criação de um “prêmio de excelência acadêmica”, iniciado em 2008 e que perdurou até 2013. A justificativa para tal prêmio seria o desempenho da USP em avaliações, tanto internacionais como nacionais, e o bom cumprimento de metas por parte das unidades. Ora, a USP e suas unidades subiram e desceram nas muitas avaliações, antes, durante e depois da existência de tal prêmio, sugerindo que a justificativa não era o desempenho da universidade. Outra evidência que está de acordo com esta hipótese é o fato que jamais foi feito um balanço para saber se as metas foram ou não cumpridas. Além disso, não havia qualquer justificativa academicamente sólida para a criação do prêmio; prêmios não eram reivindicações de nenhum setor; as consequências acadêmicas e científicas de tais prêmios nunca foram avaliadas pela universidade; e especialistas em educação em todo o mundo criticam a adoção de prêmios a educadores em função do desempenho (a literatura internacional nesse tema é muito vasta).
Outro conjunto de fatos estranhos a um projeto acadêmico consistente é formado pela aquisição, pela Universidade de São Paulo, de vários imóveis, entre eles um terreno e conjuntos comerciais na cidade de São Paulo, sem que tenha surgido uma demanda para tal. Também, no mesmo período, foram abertos escritórios no exterior, posteriormente fechados, sem que tenham tido qualquer utilidade.
Ainda no período de crescimento orçamentário, várias obras foram realizadas no campus do Butantã, como: troca do asfalto de ruas nas quais o trânsito é leve e pouco intenso; colocação de novos postes de iluminação, grande parte deles sob postes de iluminação já existentes, mantendo às escuras regiões que eram escuras; dispendiosa reforma do antigo prédio da reitoria; a criação de dois cartões (alimentação e refeição) destinados aos docentes sem que houvesse justificativa para, e demanda por, tais instrumentos. Embora cada uma dessas ações recebesse uma justificativa ad hoc, nenhuma delas tinha origem em um projeto mais geral ou em necessidades acadêmicas, educacionais, científicas, culturais ou tecnológicas.
Em meados de 2011, a USP, por meio de sua pró-reitoria de pesquisa, lançou novos núcleos de apoio à pesquisa (NAPs), com uma estimativa de gasto de muitas dezenas de milhões de reais. Os anos de 2012 e 2013 foram recheados com liberações de recursos para tais núcleos. Entretanto, no início de 2014, a reitoria, sob o comando da mesma pessoa que ocupara a função de pró-reitor de pesquisa entre 2011 e final de 2013, alegando aperto orçamentário, cortou e recolheu os recursos destinados a esses núcleos, neutralizando os efeitos positivos dos planejamentos feitos pelos grupos de pesquisa. Embora não se possa afirmar que tais gastos não estivessem ligados a tema acadêmicos, pois estavam, a forma abrupta com que eles apareceram e desapareceram nada têm de razoável.
A Praça dos Museus, um edifício no terreno da Rua da Consolação e diversas outras obras foram iniciadas de forma estabanada, na gestão reitoral de 2010-2013. Gastou-se dinheiro para iniciar as construções; gasta-se para mantê-las paradas por falta de dinheiro para conclusão; e, certamente, serão gastos recursos para pagar multas por interrupção de contratos. Os valores gastos somam centenas de milhões de reais. Ações como essas parecem ter como objetivo apenas gastar recursos financeiros e não aumentar a área construída da universidade dedicada a suas atividades educacionais, culturais e científicas.
A USP, e também a Unesp e a Unicamp, passaram a incluir entre suas despesas o pagamento de pensionistas, gasto que nada tem a ver com um projeto acadêmico. Houve, ainda, a incorporação de outras instituições sem receber recursos adicionais para tal, apesar de compromissos explícitos e por escrito do governo estadual. Ou seja, parece que um excesso de recursos sem um projeto acadêmico, deixou uma margem grande para que o governo estadual obrigasse as universidades a assumirem novas despesas.
Essas e outras ações no sentido de gastar dinheiro de forma não academicamente justificada acabaram por criar uma situação financeira bastante complicada para a USP. Essa situação, por absurdo que possa parecer, foi usada como argumento para se gastar ainda mais dinheiro: em 2014, a USP criou um programa incentivado de demissões voluntárias (PIDV) que, a valores de 2016, custaria quase meio bilhão de reais. A justificativa do programa era a busca do equilíbrio financeiro e a readequação de seu quadro de pessoal (expressões usadas na resolução 6987/2014), novamente, justificativas para ações que nada têm a ver com questões acadêmicas. Por sinal, a busca do equilíbrio financeiro só foi necessária porque, durante uma década, foi construído, cuidadosamente, um desequilíbrio financeiro.
Evidentemente, os gastos com o PIDV consumiram recursos que a USP tinha em caixa. Assim, ficou ainda mais fácil para a reitoria justificar a criação de uma nova proposta de demissão incentivada! Ainda que possa parecer absurdo, essa proposta foi aprovada em julho de 2016 sem que se tivesse avaliado as consequências financeiras e acadêmicas do PIDV anterior e sem demonstrar que a única solução para um problema orçamentário é outro programa de demissão incentivada.
É necessário observar que esses programas de demissão incentivada foram antecedidos do desligamento da USP de funcionários com tempo de aposentadoria pelo INSS, coisa ocorrida durante a gestão anterior da reitoria. Como essa ação era necessária para que o programa de demissão incentivada fosse viável, pois, de outra forma, tenderiam a optar por ela exatamente os funcionários que já tinham tempo de aposentadoria ou estavam aposentados pelo INSS, parece evidente que o PIDV foi uma ação anteriormente planejada, sugerindo uma vinculação de propósitos entre gestões sucessivas na reitoria.
Ações como a precarização e o desmonte das creches, a terceirização dos restaurantes, a redução do número de leitos do HU, as tentativas de exclusão do HRAC e do HU da USP, a terceirização das linhas circulares de ônibus são outras que ocorreram na última década. Novamente ações que têm em comum com as demais o enxugamento da universidade.

    Haverá uma explicação? Vejamos a “Lei” da Parcimônia
    As ações ocorridas nos últimos dez anos parecem desconexas, pois, para justificá-las, cada uma delas exige uma hipótese diferente, válida para ela e apenas para ela. Ora, seria verdade que três administrações sucessivas da USP fizeram ações desligadas de projetos acadêmicos, educacionais e científicos e desconectadas umas das outras, necessitando-se inúmeras hipóteses para explicar o conjunto delas? Ou há alguma coisa que as conectem?
    Um procedimento comum no método científico é uma espécie de Lei da Parcimônia. Essa lei pode ser resumida da seguinte forma: se há várias possibilidades para explicar um conjunto de fenômenos observados, o melhor é escolher aquela que exija o menor número de hipóteses (e, claro, testá-la o tempo todo). No caso das múltiplas ações ocorridas na USP, parece haver uma hipótese única que as explica, se não totalmente, pelo menos em suas essências: a USP não pode ter seu número de trabalhadores aumentado, ainda que isso possa ser um enorme ganho para os estudantes, para o desenvolvimento científico, tecnológico, cultural e social de Estado, para o aumento de profissionais formados e que muito contribuiriam para o aumento da produção econômica e da oferta de bens e serviços à população. Essa única hipótese – não aumentar o tamanho acadêmico da USP – é suficiente para explicar todos os fatos descritos e aparentemente desconexos: havendo recursos, guarda-se no cofre; se esses recursos se tornam escandalosamente grandes, gaste-se de qualquer forma, desde que não na forma de aumento da capacidade educacional, acadêmica e científica da universidade; se possível, gaste recursos para reduzir o número de trabalhadores, incentivando demissões e abandonando hospitais. Enfim, “desidrate” a USP.

    Conclusão
    Evidentemente, pode-se perguntar: por que promover ações por meio das quais, aparentemente, todos perdem?
Essa pergunta pode ser feita, também, em relação a muitos outros setores, além da universidade, nos quais gastos socialmente referenciados e orientados têm melhores e maiores retornos do que gastos feitos por particulares, como a educação básica, a saúde, a segurança, a habitação etc. Entretanto, no Brasil, e em especial no estado de São Paulo, o objetivo não parece ser otimizar os retornos dos investimentos feitos, mas, sim, impor um modelo de sociedade, o qual implica em incentivar maior mercantilização das atividades de interesse social, mesmo que isso exija que a universidade faça uma sequência de gastos sem retorno acadêmico, cultural, científico, educacional etc. Afinal, as palavras do secretario de educação paulista, que refletem, certamente, a posição do governador do estado, são claras: além de justiça e segurança, “tudo o mais, deveria ser providenciado pelos particulares”.
Novas ações da reitoria, no sentido de alterar e aumentar os mecanismos de controle docente – propósito que, em anos recentes, se iniciou com uma mudança da carreira –, de instituir programas de contratação de docentes em tempo parcial e de incentivar a redução do número de horas trabalhadas, somam-se às demais. Estas ações também podem ser explicadas pela mesma hipótese: o projeto de longo prazo é desidratar a USP e não deixá-la crescer academicamente, ainda que surjam todas as condições para tal e que a enorme maioria da população se beneficiasse com isso.

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