Financiamento eleitoral: a Câmara quer fazer uma piada virar lei?
Publicado originalmente no Correio da Cidadania, 22/5/2015
A democracia depende, evidentemente, dos fatores que pesam na escolha dos e das ocupantes dos cargos políticos e, entre eles, certamente, os mecanismos de financiamento das despesas com as campanhas políticas. Infelizmente, no caso brasileiro, este fator acabou por ter peso enorme e definitivo, fruto de legislação de meados da década de 1990 (Leis 8713, de 1993, e 9504, de 1997), que permite que pessoas físicas financiem candidaturas com até 10% de seu rendimento anual bruto e pessoas jurídicas, excluindo as que, por lei, não podem contribuir, com até 2% do faturamento anual.
Como resultado dessas leis, os custos das campanhas políticas aumentaram enormemente e a dependência de financiamentos praticamente neutralizou o efeito dos demais fatores que poderiam contribuir para os resultados eleitorais. Ou seja, as campanhas políticas passaram a ser totalmente dependentes das possibilidades financeiras dos partidos e de seus candidatos.
O poder de financiamento por pessoas físicas, aqueles 10% da renda anual do doador, nos remete à Constituição de 1824, na qual o poder político dependia, como depende hoje, da riqueza das pessoas: naquela época, quem não tivesse cem mil réis de renda anual não poderia votar nem mesmo em eleições paroquiais; para votar em deputados e senadores havia a exigência de uma renda mínima de 200 mil réis; finalmente, só poderiam ser deputados aqueles que tivessem renda de pelo menos 400 mil réis por ano. Na prática, não há qualquer diferença entre o que previa a Constituição de 1824 e a legislação atual.
Pessoas jurídicas (lojas, fábricas, empreiteiras, farmácias e laboratórios farmacêuticos, agências de publicidade, fazendas, construtoras etc.) não deveriam ser entes políticos: não podem ter ideologia, vontade ou preferência política, não podem se filiar a partidos, nem se candidatar a nada e, óbvio, não podem votar. Evidentemente, não deveriam poder interferir nos resultados eleitorais, nos partidos ou nas candidaturas e, portanto, não poderiam financiar campanhas eleitorais.
A doação oriunda de empresa é feita pela pessoa jurídica, não por seus donos, acionistas, ou por sua alta direção com dinheiro pessoal, e é necessariamente incluída na planilha de custos da empresa. Portanto, quem arcará com as despesas de financiamento eleitoral são os consumidores de seus produtos e serviços. Os seus trabalhadores também são prejudicados, pois as despesas com financiamento eleitoral entram na planilha de custos no mesmo nível que os salários, os insumos, os impostos etc. Em resumo, quem decide os candidatos ou partidos a serem beneficiados são os controladores das empresas, mas quem paga a conta são os seus clientes ou fregueses e seus trabalhadores.
E, ao que se saiba, nenhuma empresa jamais consultou seus clientes, fregueses ou trabalhadores para saber que partidos ou candidatos financiar. Em resumo: consumidores, clientes e trabalhadores dessas empresas entram com o dinheiro e seus donos, seus grandes acionistas e altos dirigentes entram com a preferência política e ideológica; nós financiamos os candidatos e partidos que interessam às elites.
A lei atual tem um disfarce de moralidade, pois limita o financiamento por empresas a 2% do faturamento anual. Mas que limite é esse? O faturamento das empresas de um país é medida na mesma escala que o PIB, trilhões de reais no caso brasileiro, e 2% de alguns trilhões de reais são muitas dezenas de bilhões de reais. Ainda que muitas empresas sejam proibidas de doar, o dinheiro disponível por esse meio para campanhas é muito mais do que suficiente para financiar milhares de candidaturas a peso de ouro e, por sinal, muito mais do que é efetivamente gasto. Ou seja, há muita reserva à disposição das empresas e, se não a usam, não é porque não podem, mas porque não precisam: para elas, ou melhor, para seus controladores, está mais do que bom assim.
Financiamento por empresas é inconstitucional, como já reconheceu a maioria dos juízes do STF em votação sobre a questão. Mas esse reconhecimento de ilegalidade está “no forno”, uma vez que um dos membros do STF pediu vistas ao processo em abril de 2014. O que vai acontecer?
Ora, frente a tão grande ilegalidade e imoralidade - afinal, repetindo, pessoas jurídicas não podem ter vontade política pela Constituição do país -, uma comissão especial da Câmara dos Deputados está tomando as providências para corrigir a situação, enquanto aquele membro do STF segura o processo. Mas, qual providência? Legalizar o financiamento eleitoral por empresas!
Para o grande público, a proposta em elaboração será apresentada como sendo moralizante, pois as doações só podem ser feitas aos partidos, jamais aos candidatos. Ora, isso nada muda em relação à atual situação. Além disso, como são “os partidos [que] deverão definir critérios para a distribuição interna dos recursos”, a doação poderá se consumar só se a distribuição interna estiver de acordo com a vontade do doador. (A Proposta de Emenda Constitucional, PEC, 182 de 2007 pode ser facilmente encontrada no sítio da Câmara dos Deputados*.) Para reforçar a embalagem pretensa e falsamente moralizante da proposta, ela prevê a existência de tetos a serem definidos em lei, tetos em “valores absolutos e em percentuais”, como diz a PEC. (Por sinal, senhores deputados proponentes, porcentual do quê?) Ora, hoje há tetos: 2% do faturamento no caso de pessoas jurídicas e 10% da renda no caso de pessoas físicas, e os novos limites serão estabelecidos por aqueles que foram eleitos por financiamentos de empresas e de pessoas abastadas.
Mark Twain tem muitas frases jocosas e uma delas é “Nós temos o melhor governo que o dinheiro pode comprar”. Como Mark Twain não está vivo, alguém precisa explicar aos proponentes da PEC que essa frase era apenas uma piada, não um projeto de lei.
* O parecer do relator e a proposta de emenda constitucional estão em http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=4CB4E15EB670113F94FFDF6525F20303.proposicoesWeb1?codteor=1332561&filename=PRL+1+PEC18207+%3D%3E+PEC+182/2007 . Sítio consultado em 21 de maio de 2015
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