Publicado originalmente no Correio da Cidadania, 6 de Novembro de 2014
Uma campanha eleitoral custa dinheiro: despesas com o deslocamento de candidatos e assessores, impressão de panfletos e “santinhos”, alugueis de veículos e espaço para comitês de campanha, realização de comícios etc. Assim, um aspecto absolutamente fundamental em uma democracia é quanto aos instrumentos (legais e ilegais) usados para o financiamento das campanhas eleitorais. Se queremos construir uma nação democrática de fato, é necessário, também, um sistema de financiamento eleitoral democrático. E o atual sistema de financiamento é democrático?
A legislação que regula o financiamento eleitoral no Brasil permite “doações e contribuições de pessoas jurídicas para campanhas eleitorais ... [desde que] ... limitadas a dois por cento do faturamento bruto” anual (Lei 9504 de 1997). Essas poucas palavras mostram que a lei não apenas não é nada democrática, como impede a democracia eleitoral. Por sinal, ela já foi considerada ilegal, por ser inconstitucional, pelo STF. Vamos ver o que aquelas palavras significam.
Inicialmente, vejamos a que valor se refere aquele limite de 2%. O faturamento das empresas de um país é medida na mesma escala que o PIB, alguns trilhões de reais ao ano no caso brasileiro. Dois por cento desse dinheiro corresponde a muitas dezenas de bilhões de reais. (Só as cem maiores empresas faturam, anualmente, perto de dois trilhões de reais. Dois por cento desse valor corresponde a 20 bilhões de reais, quantidade mais do que suficiente para financiar todas as campanhas eleitorais de todos os candidatos do país.) Portanto, a imposição de um limite, de 2%, é inócua, servindo apenas para dar alguma aparência de seriedade à norma. Se os detentores do poder financeiro não elegem mais pessoas não é porque não podem, mas porque não precisam.
Mas esse é apenas um pequeno aspecto não democrático daquela lei. Note que quem financia a campanha eleitoral é a empresa, não seus donos ou acionistas. Logo, se é a empresa a doadora, as despesas com financiamento político e eleitoral entrarão, evidentemente, nas suas planilhas de custo, em pé de igualdade com os salários, impostos, insumos, aluguéis, contas de energia e telefonia etc.. Portanto, quem paga a conta são os usuários dos serviços e os compradores de produtos da empresa doadora. Assim, os financiamentos eleitorais estão embutidos nos preços dos remédios e dos imóveis; se um ente público contrata uma empreiteira, ele arcará com parte dos financiamentos eleitorais feitos por ela; os bancos incluirão suas despesas eleitorais nas tarifas que todos pagamos; nos preços dos frangos estão embutidos a ração que comeram, os salários dos funcionários, as despesas de transporte até o local de venda, aluguéis, impostos, etc. ... e os candidatos e partidos escolhidos pelos donos e pelas altas direções dos frigoríficos.
Em resumo, quem paga a conta é o consumidor, mas quem escolhe os candidatos e partidos financiados são os controladores das empresas. E, claro, jamais aparecerá nas embalagens dos produtos os nomes dos candidatos e partidos financiados: aos consumidores e eleitores cabe apenas a tarefa de pagar as contas eleitorais dos candidatos escolhidos pelos donos e altos administradores das empresas.
Outro aspecto não democrático da legislação: a participação de empresas no financiamento de campanha políticas as encareceu enormemente, dificultando e mesmo inviabilizando candidaturas legítimas e representativas de pensamentos amplamente aceitos no país, mas que não têm acesso a financiamentos. Como esses são usados para financiar propagandas eleitorais, contratar marqueteiros e espalhar divulgadores da campanha por todo o país, eles contribuem para a despolitização da sociedade e dos eleitores. Afinal, um bom projeto político, um bom argumento, um comício e a visita de um candidato a grupos de pessoas aos quais tenha algo a dizer têm peso reduzido na conquista de apoio e votos quando o ambiente está saturado de propagandas comerciais.
Que providências a Câmara dos Deputados está tomando para resolver a questão do financiamento político por empresas quando o próprio STF já reconheceu sua ilegalidade, uma vez que a Constituição não reconhece empresas como entes políticos? Os otimistas poderiam imaginar que ela iria criminalizar aquele tipo de ato inconstitucional. Mas, não: o grupo de trabalho formado em 2013 para analisar a questão optou por encaminhar uma proposta de emenda constitucional (PEC) que... torna constitucional o financiamento político por empresas! Com a alteração proposta, “os partidos políticos poderão financiar as campanhas eleitorais com recursos privados (...)”, inclusive na forma de “doações de pessoas jurídicas para as campanhas eleitorais” (PEC 352/2013). Pela proposta, a Constituição brasileira passa a reconhecer empresas como entidades com direitos políticos.
Evidentemente, as chances de se construir um país democrático ficarão ainda mais reduzidas com a constitucionalização do que parece corromper definitivamente as finalidades fundamentais das instituições democráticas. (A lista dos membros do grupo de trabalho que propôs a emenda constitucional 352/2013 e seus respectivos partidos aparece no final.
A esse absurdo de se permitir que dirigentes de empresas decidam quem vai ser financiado com o nosso dinheiro, soma-se outro absurdo: no Brasil, pessoas físicas podem fazer doações políticas até o limite de 10% de suas respectivas rendas anuais. Ou seja, quanto mais rico alguém for, maior é seu poder eleitoral, como era na Constituição de 1824, quando quem não tivesse cem mil réis de renda anual não poderia votar nem na sua paróquia e, para votar para deputados e senadores, havia a exigência de uma renda mínima de 200 mil réis. Para que houvesse alguma democracia, a doação por pessoas físicas deveria ser limitada a um valor tal que todos pudessem ter os mesmos poderes. Por exemplo, as doações por pessoas físicas poderiam ser limitadas a um valor compatível com a renda per capita do país, digamos, 5% dela, independentemente da renda do doador.
Se queremos construir um país democrático, é fundamental lutar para evitar a legalização do financiamento político por parte de empresas. Não temos chance alguma de construir um país realmente democrático quando os donos do país se transformam nos únicos a poder mandar nele. É necessário lutar contra essa alteração inaceitável da Constituição, que regulamenta o que deveria ser proibido e criminalizado.
Talvez seja o caso de lançar uma campanha antecipada pelo voto nulo nas próximas eleições, em 2016, caso os dirigentes e proprietários de empresas continuem a decidir quais partidos serão financiados com nosso dinheiro e as pessoas físicas continuem podendo doar tanto mais quanto mais ricas forem.
Fontes dos dados:
- O relatório do grupo de trabalho e a proposta de emenda constitucional aparecem neste endereço:
http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=D58360783C51CE8B9429EF439588BB8D.proposicoesWeb2?codteor=1176709&filename=PEC+352/2013
- Detalhes sobre o andamento da PEC 352 podem ser encontrados aqui:
http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=600023
Membros do grupo de trabalho sobre a reforma política que encaminhou a proposta de emenda constitucional número 352 de 2013, que legaliza o financiamento político feito por empresas, seus partidos e Estados de origem:
Antônio Brito PTB BA
Arolde de Oliveira PSD RJ
Alfredo Sirkis PSB RJ
Cândido Vaccarezza PT SP (coordenador do GT)
Daniel Almeida PCdoB BA
Edmar Arruda PSC PR
Eliseu Padilha PMDB RS
Esperidião Amin PP SC
Guilherme Campos PSD SP
Guilherme Mussi PP SP
Izalci PSDB DF
Julio Delgado PSB MG
Leonardo Gadelha PSC PB
Luciano Castro PR RR
Luiza Erundina PSB SP
Marcelo Castro PMDB PI
Marcos Rogério PDT RO
Marcus Pestana PSDB MG
Miro Teixeira PROS RJ
Paes Landim PTB PI
Ricardo Berzoini PT SP
Rodrigo Maia DEM RJ
Rosane Ferreira PV PR
Sandro Alex PPS PR
Stepan Nercessian PPS RJ
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