Publicado originalmente no Correio da Cidadania em 5 de março de 2013
Recentemente, o governo do estado de São Paulo divulgou uma proposta de criação de cotas sociais para acesso ao ensino superior público paulista (que inclui as três universidades estaduais, as Fatecs e duas escolas isoladas de medicina). O objetivo seria preencher pelo menos 50% das vagas com estudantes de escola pública, 35% delas com estudantes dos três grupos étnicos.
Apesar de essa descrição corresponder à forma que a proposta tem sido
divulgada pelo governo estadual, uma leitura atenta mostra que não é bem
assim.
De fato, o cerne da proposta é a criação de um curso de dois anos de duração, a ser feito após o ensino médio (curso pós-médio), cujas disciplinas previstas não permitem nem que ele possa ser caracterizado como uma espécie de recuperação de deficiências vindas do ensino médio nem de preparação para cursos superiores.
Essa afirmação tem como base a ausência de disciplinas típicas do ensino médio, como História, Geografia e Biologia, e a existência de disciplinas de empreendedorismo, matemática financeira, liderança e trabalho em equipe, entre outras. Não se pretende discutir aqui a validade (totalmente duvidosa) de tais cursos, mas, certamente, eles nem correspondem à recuperação de deficiências escolares trazidas do ensino médio nem preparam para o ensino superior (o conteúdo integral da proposta pode ser encontrado, com alguma paciência, na internet, procurando por seu acrônimo, PIMESP).
As cotas, que de fato aparecem na proposta, entram não para sanar ou minorar os problemas da segregação social, econômica e étnica existente na sociedade brasileira, mas, sim, para legitimar a criação do curso pós-médio pretendido. Ora, a inexistência de um curso pós-médio, ainda mais a distância, como parece ser a proposta (uma vez que será implantando com a contribuição da Univesp, um programa do governo estadual que promove, incentiva e fomenta o ensino a distância), nunca fez parte dos problemas da educação brasileira.
As boas universidades, como é o caso da Unesp, Unicamp e USP, nunca sentiram falta de um curso daquele tipo, cujos estudantes deveriam fazer antes de nelas ingressarem. O setor produtivo, que tanto reclama, com razão, da falta de quadros bem preparados, nunca sugeriu que esse problema pudesse ser resolvido por um curso pós-médio, ainda mais a distância. Os movimentos que lutam por cotas étnicas e sociais também nunca incluíram em suas pautas a reivindicação de um curso naquela modalidade e forma. Movimentos que congregam educadores bem como suas associações profissionais e científicas também nunca fizeram referência à falta de um curso desse tipo.
Portanto, cabem as perguntas: a proposta feita pelo governo estadual responde a que demanda? Ela é solução para que problema? Ela é, de fato, a tentativa de criar mais um problema.
Cotas, sim. Curso pós-médio e a distância, não
Um curso pós-médio não é uma forma adequada para o preenchimento de cotas nas universidades pelas seguintes razões: primeiro, e obviamente, os possíveis beneficiados por um sistema de cotas têm um desempenho pior nos processos seletivos do que os não cotistas (caso isso não ocorresse, as cotas seriam desnecessárias). Entretanto, essa diferença de desempenho não é devida a nenhuma característica própria do estudante, mas, sim, um reflexo de dificuldades econômicas, do fato de que frequentaram escolas piores do que seus colegas não cotistas, ou porque trabalharam durante os estudos ou alguma outra razão que possa prejudicar sua formação escolar.
A criação de um curso pós-médio, dessa forma, será mais um problema no nosso já combalidíssimo sistema educacional. Oferecer a esses estudantes cotistas um bom ambiente de estudo, eventuais disciplinas de recuperação nas próprias unidades de ensino ou bolsas de estudo nos casos em que as dificuldades sejam de caráter econômico são soluções suficientes para o problema. Dirigi-los a um curso pós-médio a distância, não: todos perderão com isso, inclusive os cotistas.
Qual o efeito das cotas nas boas instituições de ensino e pesquisa?
Para se saber quais são as melhores formas de criar cotas e tratar os cotistas, é necessária alguma análise do perfil dos ingressantes não cotistas e cotistas. Para isso, vamos ver alguns dados e algumas ideias que podem ajudar a entender o problema e encaminhar as soluções.
Nos diferentes cursos superiores, o desempenho que os estudantes apresentaram nos processos seletivos é bastante variado. Em um curso muito competitivo, a variação entre as maiores e as menores notas é da ordem de 30%; nos cursos menos procurados, essa variação supera um fator dois.
Apesar dessa dispersão do desempenho dos estudantes nos processos seletivos – a qual pode refletir diferentes níveis de preparo, mas também interesses por outras atividades, as diferentes condições econômicas e sociais em que vivem, a dedicação de parte do tempo a outras atividades importantes, entre outras causas –, as universidades sabem trabalhar com ela. Além disso, parte dessa heterogeneidade é própria do ser humano e, em muitos casos, é a base que forma a parte saudável da variabilidade social, cultural, profissional e pessoal com a qual aprendemos a viver e da qual gostamos e precisamos.
Mas o que ocorreria com a dispersão das notas nos processos seletivos se parte das vagas viesse a ser ocupada por cotistas? Para responder com precisão, seria necessário ter a classificação dos candidatos nos diferentes processos seletivos, cursos e regiões do país e examinar com detalhes as características dos novos ingressantes. Entretanto, um exame da variação das notas em provas amplas, como o Enem, por exemplo, pode dar uma indicação disso. Por exemplo, as três universidades públicas paulistas recebem cerca de sete mil estudantes por ano vindos de escolas públicas de ensino médio. Os sete mil estudantes de escolas públicas paulistas com melhores notas no Enem, em uma escala de zero a cem, são aqueles que têm notas maiores do que 62,3.
Se essas três universidades adotassem uma política de cotas e admitissem 50% dos ingressantes vindos de escolas públicas (correspondentes a onze mil pessoas), a nota de corte seria reduzida para 60,8. Essa pequena diferença mostra que incluir os cotistas alargará ligeiramente a faixa de desempenho nos processos seletivos dos ingressantes, mas em uma proporção muito menor do que aquela que já se observa nos diferentes cursos. Além disso, como já dito, essa diferença de nota dos possíveis cotistas pode estar muito mais relacionada a fatores sociais, inclusive quanto à escola que frequentaram e, portanto, pouco ou nada alterará o desempenho futuro dos estudantes e profissionais quando comparado com o de seus colegas não cotistas. Caso a instituição de ensino tenha condições adequadas para responder às necessidades de seus estudantes, só poderá haver mudanças para melhor.
Conclusão
Receber nas instituições públicas de ensino superior estudantes com um desempenho nos processos seletivos que levem a um pequeno ou mesmo pequeníssimo aumento na já existente heterogeneidade encontrada exigirá nenhum ou muito pouco esforço adicional das unidades de ensino, como o eventual oferecimento de algumas poucas disciplinas de recuperação. Disciplinas que poderão beneficiar também os demais estudantes que se sentirem insuficientemente preparados e que estejam realmente interessados no curso em que ingressaram. A instituição de bolsas de estudo, com valores realistas, que minimizem dificuldades econômicas que atrapalham o desempenho estudantil, talvez seja uma das melhores soluções tanto para os cotistas como, também, para muitos estudantes que hoje ingressam nos cursos superiores públicos, mas têm grandes dificuldades de acompanhá-los adequadamente por causa de dificuldades financeiras. Dificuldades estas que os obrigam a gastarem boa parte do tempo e esforço para trabalhar e/ou impõem restrições materiais graves, as quais acabam por prejudicar os estudos.
Um curso pós-médio, a distância, nada tem a ver com a questão de cotas, como o governo estadual quer nos fazer acreditar. E usá-lo como um processo de seleção de cotistas é totalmente inadequado.
Além disso, o processo proposto pelo governo pode implicar em uma frequência de até dois anos em um curso possivelmente a distância, duas péssimas ideias: não são necessários dois anos de recuperação, como mostra a análise de desempenho nos vestibulares feita mais acima; esperar dois anos é muito tempo para um jovem que pretende ingressar em um curso superior; um curso a distância é inaceitável por razões várias já levantadas, inclusive em artigo publicado neste Correio da Cidadania (Ensino a distância não é uma solução, e sim outro problema a ser superado), ainda mais com as disciplinas que tem (e as que não tem).
A proposta do governo estadual não é uma proposta de cotas: é uma proposta de criação de um curso pós-médio, pelo menos parcialmente a distância, com um currículo inadequado, dirigido a pessoas que precisam e querem educação séria e de qualidade, portanto, não a distância. A inclusão de cotas sociais no bojo dessa proposta é apenas uma tentativa para legitimá-la.
Portanto, a proposta do governo é inaceitável e deve ser repudiada. Devemos denunciar, também, o truque de disfarçá-la de proposta social. Não precisamos nem queremos isso. Há formas muito mais simples, objetivas e sérias se o que se quer é criar cotas nas instituições de ensino superior. Cotas, sim e já, mas não dessa forma.
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