5 de jul. de 2009

Um projeto que não admite contestações

Publicado originalmente em Le Monde Diplomatique em 05 de Julho de 2009, Otaviano Helene

No dia 9 de junho passado, uma tropa de choque da Polícia Militar paulista, fortemente armada, atacou um grupo de estudantes e funcionários técnico-administrativos da Universidade de São Paulo (USP) dentro do campus, após uma manifestação pacífica. Parte dessa operação ocorreu próximo a uma assembleia dos docentes da universidade que, ao ouvirem os sons de bombas e gritos, suspenderam a reunião. Várias pessoas dirigiram-se ao local para intervir, com o objetivo de tentar reduzir o estrago. Os resultados da operação foram algumas prisões e várias pessoas feridas ou vítimas de gás lacrimogêneo e sprays irritantes, inclusive professores que procuravam apaziguar os ânimos. Ações policiais como essa não ocorriam no campus há décadas.

Descrever a sequência de fatos que levou a essa repressão absurda pouco contribuirá para entendermos o que pode estar ocorrendo na USP. Talvez baste lembrar que o acirramento das posições teve início em 25 de maio, quando, após uma primeira reunião inconclusa, os reitores das três universidades estaduais paulistas suspenderam as negociações da pauta de reivindicações de data-base que deveriam ocorrer com professores, funcionários e estudantes. Havia na pauta uma série de itens referentes a interesses amplos da sociedade, tais como expansão do ensino público superior e manutenção de sua qualidade, bem como ações de assistência estudantil que visam reduzir as dificuldades encontradas pelos mais pobres.
A partir da interrupção das negociações, as posições das partes em conflito foram se acirrando: inicialmente, um pedido de reintegração de posse com força policial, em resposta à formação de piquetes por parte dos funcionários técnico-administrativos; a seguir, a entrada em greve dos docentes e dos estudantes; intensificação da greve dos estudantes e funcionários; e finalmente a ação policial de 9 de junho. No dia seguinte a essa ação, a assembleia da Associação dos Docentes da USP decidiu pedir a saída da reitora, Suely Vilela, do cargo que ocupa.
No momento que este texto estiver sendo lido, outros fatos terão ocorrido, esperamos que na direção da retomada das negociações interrompidas e da volta à normalidade. Entretanto, a convocação da Polícia Militar pela reitoria libertou os diabinhos da violência que habitam os grupos mais radicais à direita do espectro político, os quais decidiram partir para provocações inusitadas aos trabalhadores em greve, como ocorreu, por exemplo, no dia 19 de junho. Se não forem recolhidos, tais diabinhos poderão ainda criar muitos problemas.
Antecedentes
Como então entender os fatos ocorridos na USP? Afinal, por que chegamos ao ponto de a reitora sentir necessidade de chamar a polícia, o que não ocorreu em outras épocas até mesmo mais tensas, como em 2000, quando o edifício da reitoria foi sitiado e o então reitor, Jacques Marcovitch, decidiu nele permanecer, em autorreclusão, por cerca de um mês? E em 2007, quando o mesmo prédio foi ocupado por quase dois meses? Por que estudantes, docentes e funcionários se mostram tão descontentes? O que se está defendendo?
O discurso daqueles que defendem a convocação da PM é de que isso, justamente, evita ações como as ocorridas em 2000 e 2007. Entretanto, essa justificativa não se sustenta, uma vez que as reações que a presença da PM no campus suscitaram e suscitarão são atos proporcionais a essa interferência indevida. Se uma assembleia de docentes, normalmente bastante tolerante quanto às ações da reitoria e plena de sexagenários ou quase, “pede a cabeça” da reitora, podemos imaginar como outros segmentos e setores das universidades estaduais agirão. Portanto, chamar a PM ao campus apenas acirra os ânimos, as lutas e disputas e fortalece os segmentos mais extremados, tanto à direita quanto à esquerda do espectro político.
Nesse sentido, a convocação da PM ou foi um erro grosseiro, ou é necessária à implementação de um projeto mais amplo que não se esgota (nem se inicia) na reitoria da USP. No último caso, visaria sinalizar que ações que contestam a política estadual de educação não serão toleradas, mesmo que seja na forma de reivindicações salariais, mais recursos para a educação pública paulista, políticas sociais de permanência estudantil e expansão da educação pública superior de qualidade, e contra o programa estadual de ensino à distância, entre outras que constam da pauta de data-base. Mas que projeto mais amplo é esse que não admite contestações?
O projeto paulista (e brasileiro)
Uma das principais características da educação superior brasileira é a sua privatização. Juntamente com Indonésia, Coreia do Sul, Japão, Chile, Filipinas e Colômbia, o Brasil é um dos poucos países no mundo onde a educação superior privada excede 70% das matrículas. Apenas para comparação, a privatização do ensino superior nos Estados Unidos e na Argentina está na faixa de 20% a 25%; na Turquia, Itália e Suécia, abaixo de 10%. Mais grave ainda, o Brasil é dominado por instituições de cunho mercantil, onde as planilhas de custo falam mais alto que os critérios acadêmicos. Os cursos oferecidos e os locais onde as instituições privadas são instaladas dependem de critérios comerciais, e não das necessidades profissionais ou das carências regionais do país.
Mas, se a situação nacional é grave, mais grave ainda é o cenário paulista. A média nacional de privatização – aferida pela porcentagem das matrículas em instituições privadas em relação ao total – é de 75%. Porém, se analisarmos São Paulo separadamente, esse número sobe para 90%, enquanto permanece em 30% nos demais estados. Assim, se São Paulo fosse um país, estaria, de longe, em um imbatível primeiro lugar mundial na privatização da educação superior.
Em termos relativos à população, a privatização paulista também é mais intensa que nos demais estados: em São Paulo, em números redondos, há uma matrícula em instituição pública para cada 350 habitantes, contra uma para cada 150 habitantes no restante do Brasil.
Por que isso ocorre no estado mais rico da Federação e o segundo mais rico em termos de renda per capita, logo abaixo do Rio de Janeiro? Certamente não é por impossibilidade econômica, mas sim por uma política de Estado: como a renda per capita é relativamente alta comparativamente ao restante do país, deixa-se grande espaço para as instituições privadas se deliciarem com a ausência do setor público e poderem vender livremente sua mercadoria, ainda que de baixa qualidade e nefasta aos interesses da sociedade.
Frente a essa situação, e considerando-se o enorme esforço na formação de mestres e doutores, uma grande parte dos quais não encontra empregos que possam aproveitar integralmente seus conhecimentos e capacidade de trabalho, esperaríamos uma expansão da educação superior pública de qualidade e com cursos voltados às necessidades e interesses da população. Entretanto, qual a política adotada pelo governo estadual, nas mãos dos (neo)liberais há muitos mandatos, e também pelo governo federal? Em vez de promover a expansão da rede pública de ensino superior e controlar a qualidade das privadas, optam por um programa de educação à distância, por incentivos financeiros a instituições particulares e por uma pequena expansão de vagas em cursos presenciais nas públicas sem a necessária base financeira e, portanto, comprometendo a qualidade dos cursos e as condições de trabalho. Essa situação por si só já criou um grande descontentamento na comunidade acadêmica, ferindo, inclusive, a necessária e desejada autonomia universitária.
A política de expansão do ensino à distância adotada pelas universidades públicas aumentou muito o descontentamento nessas instituições, tanto por parte dos estudantes como do corpo docente, já que o esforço para formar quadros para o país, que poderiam viabilizar a educação superior presencial e de qualidade, é simplesmente jogado no lixo, uma vez que esse tipo de curso prescinde de um corpo docente, substituído por monitores.
O ensino à distância, além de ser potencialmente de menor qualidade, não responde à demanda e aos anseios da população nem às necessidades de desenvolvimento cultural, econômico e científico do Estado. Essa política pode também afetar os trabalhadores não docentes das universidades estaduais, que contribuíram diretamente para a formação de quadros, mas veem seus filhos ainda mais distantes do acesso a um ensino público gratuito, de qualidade e presencial.
No campo interno, a democracia é muito tênue nas universidades públicas brasileiras, com pouquíssima participação de membros eleitos diretamente em seus colegiados e órgãos de direção. Por exemplo, no órgão máximo de direção da USP, o Conselho Universitário, a representação estudantil e de funcionários técnico-administrativos é inferior ao exigido pela LDB, lei máxima da educação brasileira. De seus cerca de 110 membros, somente cinco são docentes eleitos (e ainda indiretamente!) por seus pares, sendo a grande maioria desse colegiado constituída de diretores de unidades escolhidos pela reitoria, bem como de representantes das diferentes unidades (faculdades, institutos e escolas) escolhidos por seus órgãos máximos, os quais por sua vez são dirigidos pelos diretores... Assim, a autonomia universitária acaba por criar grupos restritos de poder que se revezam nos vários cargos, indicando-se uns aos outros segundo critérios não explicitados.
Outra fonte de descontentamento, em especial entre os docentes, é a perda salarial absoluta e relativa. Desde 1989, quando se iniciou a autonomia financeira das universidades estaduais paulistas, houve uma grande perda salarial. Apenas para manter a posição relativa na sociedade e poder participar dos novos bens e serviços surgidos (ou ampliados) desde então, o poder aquisitivo dos salários deveria crescer na mesma proporção que a renda per capita do país, ou seja, cerca de 30%. Entretanto, ao contrário, o poder aquisitivo desde então foi reduzido em cerca de 30%!
Essa perda de renda é viabilizada, ironicamente, pelo aumento do número de doutores formados em função do próprio trabalho acadêmico, na medida em que, havendo maior número de pessoas procurando uma posição compatível com sua formação, sem que tenha havido um crescimento do número de posições na mesma proporção, propicia-se uma redução dos salários. Ou seja, o esforço aplicado à formação de doutores contribuiu para viabilizar uma redução salarial e não a necessária, viável e desejada expansão da educação pública superior.
Para resumir, a política de educação superior paulista desagrada amplamente grande parte da comunidade universitária, não responde aos anseios da população nem é instrumento de promoção do desenvolvimento econômico, cultural e social do país. Internamente às universidades, a política adotada também causa imenso descontentamento. A soma desses fatores à repressão policial ao movimento social organizado – gostemos ou não dele, é o que existe – forma um ambiente perigosamente explosivo, onde uma das vítimas está sendo a autonomia universitária. A continuar as atuais políticas de ensino superior, no país e em São Paulo, a autonomia poderá perecer ou ser desnecessária, pois com a redução da educação pública presencial e de qualidade, não haverá onde aplicá-la.
Otaviano Helene é professor associado do Instituto de Física, presidiu a Adusp (Associação de Docentes da Universidade de São Paulo) de julho de 2007 a junho de 2009. Foi presidente do INEP (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais).

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