20 de nov. de 2006

Reforma universitária, é isso mesmo?

 Publicado originalmente no Jornal da USP no. 783, 19/11/2006

OTAVIANO HELENE E LIGHIA B. HORODYNSKI MATSUSHIGUE

O tema “reforma universitária” tem ocupado algum espaço nos meios de comunicação, que, entretanto, o tratam de maneira superficial e, muitas vezes, com parcialidade. Mesmo no meio acadêmico as discussões não têm sido suficientemente profundas. Decorre daí que o tema tem sido alvo de julgamentos equivocados.
O que se convencionou chamar de “reforma universitária” é um conjunto de projetos de lei (PLs) que poderá ter importantes conseqüências na educação brasileira. Portanto, é necessário estudar o conteúdo desses PLs, bem como das emendas apresentadas, e a forma pela qual o processo está sendo encaminhado.
Aparentemente, governo e oposição apostam na confusão e na falta de articulação no desenrolar do processo. A própria expressão “reforma universitária”, que empresta a seu conteúdo uma embalagem aparentemente bonita, é inadequada. Os PLs não tratam apenas da estrutura universitária, mas de toda a educação superior (a maioria das instituições de ensino superior brasileiras não são universidades) e, portanto, a expressão “universitária” é descabida. A palavra “reforma” também é equivocada, pois induz à idéia de alterações de caráter acadêmico, enquanto os PLs tratam mais de questões administrativas.
Para analisar a situação, é necessário considerar como tramitarão esses PLs no Congresso. O mais antigo data de 6 de outubro de 2004 (PL 4212/04) e é de autoria do deputado Átila Lira. A ele estão apensados o PL 4221/04, do deputado João Matos, muito mais abrangente e também de cunho acentuadamente privatista, e o PL 7200/06, apresentado em junho último pelo Executivo (recentemente, um novo projeto cuja origem é a Federação de Sindicatos de Trabalhadores das Universidades Brasileiras, PL 7398, foi apensado ao PL 4212). Há estranhas coincidências com relação aos dois PLs de 2004: foram depositados no mesmo dia; citam como justificativa o mesmo texto; foram apresentados por ex-secretários de educação; e ficaram parados durante 20 meses.
Ao PL governamental foram apresentadas 368 emendas. Uma análise destas e dos PLs de 2004 mostra um interesse articulado do setor privatista, que objetiva derrubar os poucos aspectos positivos do projeto governamental. Essa articulação é também evidenciada pelas emendas: para eliminar alguma possível restrição ao setor privado, uma emenda propõe a eliminação de um determinado artigo; caso não seja aprovada, há outra que altera sua redação; caso ainda haja insucesso, outra emenda procura eliminar ou alterar alguns parágrafos do artigo. Além disso, várias das justificativas apresentadas são também idênticas.
Uma análise exaustiva do conteúdo dos PLs e das emendas seria impossível em um texto curto. Entretanto, alguns exemplos podem servir para ilustrar a gravidade da situação. Segundo a LDB de 1996, para que uma instituição possa ser considerada universidade é necessário que ela tenha “um terço do corpo docente, pelo menos, com titulação acadêmica de mestrado ou doutorado”, uma redação que afronta a inteligência de qualquer leitor: ela exigiria o mesmo se a redação fosse interrompida na palavra mestrado. A expressão ou doutorado contribui apenas para emprestar seriedade àquela lei. Em 1996, o Brasil já tinha um número de doutores suficiente para que as exigências fossem mais rigorosas. Atualmente, quando o País tem mais do que 80 mil doutores, crescendo a uma taxa superior a 8 mil por ano, é inconcebível uma instituição de ensino superior sem doutor em seu corpo docente, ainda mais se for uma universidade. Além disso, a não exigência de doutores nos corpos docentes de instituições de educação superior pode comprometer a manutenção da taxa de crescimento de pessoas tituladas e o sistema nacional de pós-graduação.
O PL governamental exige um mínimo de 25% de doutores no quadro docente de universidades e 11% em centros universitários, porcentuais abaixo do que seria possível considerando a realidade. Mas essa modesta exigência poderá ser derrubada pela força da bancada privatista no Congresso, como demonstram os dois PLs citados, que continuam a não exigir doutores em universidades, e as emendas que a eliminam do PL governamental. Portanto, uma das conseqüências da “reforma” é manter e agravar a situação atual.
O PL 4221 ainda redefine o que se deve entender por pesquisa em universidades. Segundo esse texto, a exigência mínima seria de que apenas 3% do total dos docentes, não necessariamente doutores, se dedicassem a essa tarefa, reunidos em pelo menos dois grupos de pesquisa, reconhecidos como tal pela própria instituição. A pós-graduação se constituiria em alternativa à exigência anterior, podendo restringir-se a um único “curso ou programa”, mesmo que apenas em nível de mestrado.
Esses exemplos ilustram a concepção que o setor privatista mercantil tem do que seja uma universidade.
Outro aspecto importante da “reforma” diz respeito à gratuidade do ensino. A Constituição de 1988 prevê “gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais”, sendo que sempre se entendeu a palavra “ensino” como toda e qualquer atividade de aprendizado que envolva estudantes e professores. O PL governamental, entretanto, redefine como “ensino” apenas as atividades associadas a cursos de graduação e de pós-graduação stricto sensu. Assim, cursos de extensão, pós-graduação no sentido mais amplo e outros poderão ser cobrados. Ainda que haja muitas pessoas a favor da cobrança do ensino superior nas instituições públicas, é razoável supor que elas não concordem que essa possibilidade venha a ser imposta por meio de uma sutileza de redação.
Há vários outros aspectos que devem ser considerados. Um deles é quanto à abrangência emprestada à educação a distância, bastante beneficiada pelos PLs, também o governamental, incluindo inclusive o mestrado e o doutorado (note-se que o assunto, por incrível que possa parecer, já está regulamentado por decreto desde dezembro do ano passado). É necessário observar que a educação a distância, liberada incondicionalmente às instituições mercantis, contribuirá para rebaixar ainda mais a qualidade da educação brasileira, já tão comprometida por cursos abreviados, e abrirá uma brecha enorme aos interesses mercantis transnacionais.
Há inúmeros outros retrocessos nos PLs e nas emendas em discussão. O PL 4221 cria a figura abominável do professor “horista”, que deveria ser eliminada e não regulamentada. Outra pérola do mesmo PL é permitir que qualquer instituição de ensino superior atribua validade a diplomas de pós‑graduação obtidos no exterior, mesmo que essa instituição não tenha curso equivalente.
Entre as justificativas das propostas apresentadas por defensores do setor mercantil, apela-se para a liberdade de ação do setor privado e os “princípios da livre iniciativa”. Nas justificativas das emendas aparecem argumentos contra, até mesmo, a exigência de regularidade fiscal das mantenedoras. A pequena limitação da participação do capital estrangeiro contida no PL governamental é qualificada de xenófoba. Propostas de regulamentação da educação privada são rechaçadas por serem “ingerências na iniciativa privada” ou “excrescência”; contra a existência de ouvidoria em universidades privadas apela-se para a autonomia; a atuação da Capes como órgão responsável pelo reconhecimento da pós-graduação é eliminada por ser uma “excrescência centralizadora”.
O próprio PL governamental mostra traços mercantis. Por exemplo, a limitação do capital estrangeiro em instituições de ensino superior é apenas para o capital votante, não para o capital total; ao proibir franquias no setor educacional, próprias de modalidades empresariais e associadas ao uso de uma marca, o projeto governamental reconhece implicitamente o aspecto mercantil da educação.
Até meados de agosto os PLs em questão tramitavam em regime de urgência. Como conseqüência das pressões, o Executivo solicitou a retirada desse regime e, agora, eles tramitam em regime de prioridade. Considerando a importância do tema, a superficialidade e a parcialidade com que é tratado pelos meios de comunicação e a sua importância para toda a sociedade, a participação da comunidade acadêmica na discussão da legislação é fundamental. Para isso, é necessária a retirada do regime de prioridade ou, mesmo, a retirada dos próprios projetos da tramitação, conforme reivindicação do recente congresso da Anped (Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação), para que haja tempo para estudos e debates dos conteúdos e das conseqüências dos PLs e de suas emendas. Se isso for feito, teremos alguma chance de reduzir as derrotas previsíveis. Caso não, a educação superior será ainda mais dominada pelo caos da mercantilização.
Informações sobre o conteúdo e o andamento dos Projetos de Lei (PLs) no Congresso podem ser encontradas na página eletrônica da Câmara. Os diferentes PLs podem ser localizados por seus números e datas.

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