Desmontar o desmonte, publicado originalmente em Carta Capital, 21/12/2023
No final de 2015 o PMDB divulgou o documento intitulado “Uma ponte para o futuro”, que deixava claro o que seria um novo governo comandado pelo então vice-presidente. Esse documento serviu para angariar apoio, junto aos setores ultraliberais, para a derrubada da presidenta Dilma Rousseff. Aquela Ponte previa uma redução do estado e dos direitos sociais e o favorecimento dos interesses privados. As reformas que vieram não foram surpresas. Vejamos três exemplos de ações governamentais, compatíveis com o previsto naquele documento, nas áreas de educação e de pesquisa científica e tecnológica, que ocorreram após a posse interina de Temer e que continuam mantidas até hoje.
Um dos primeiros atos do governo Temer, em
maio de 2016, foi iniciar o desmonte do sistema de fomento da pesquisa
científica e tecnológica do país, rebaixando a posição do CNPq no governo. Em
seguida vieram as reduções sistemáticas de seu orçamento, chegando, em poucos
anos, à terça parte do que tinha sido por volta de 2015. A Capes, o principal
órgão de fomento à formação de pessoal de nível superior no país, seguiu o
mesmo rumo, tendo seu orçamento reduzido na mesma proporção.
Esse processo foi
estendido ao sistema educacional federal como um todo, na forma de redução dos
orçamentos das universidades. O ataque continuou durante o período Bolsonaro e,
vale lembrar, está sendo reproduzido em São Paulo, com um projeto de alteração
da constituição do estado que levará a uma redução dos recursos destinados à
educação pública estadual de 17%.
Um segundo exemplo é
o ataque à estrutura do sistema educacional. No final de 2016 o governo
apresentou uma medida provisória alterando a lei de diretrizes e bases da
educação nacional (LDB). Menos de cinco meses depois, em fevereiro de 2017, ela
estava convertida em lei, um prazo curtíssimo em comparação à LDB, prevista na
Constituição de 1988 e finalizada apenas em 1996. Tal rapidez na tramitação, e
ainda durante o período de recesso escolar, sugere que havia coisas a serem
escondidas da população e, em especial, dos estudantes. Essa lei, conhecida
como Novo Ensino Médio (NEM), incluía a permissão para que pessoas sem cursos
superiores ou de magistério atuem como professores, a limitação em um máximo de
1.800 horas de aula ao longo do ensino médio destinado ao cumprimento do
previsto na Base Nacional Comum Curricular, a criação de itinerários formativos,
o aumento das possibilidades de ensino a distância, inclusive por meio de terceirização,
e apenas as disciplinas de matemática e língua portuguesa como obrigatórias em
todos os anos do ensino médio. Quando os aspectos danosos das mudanças foram se
mostrando evidentes, surgiram protestos intensos, em especial por parte dos
estudantes, que levaram o atual governo a encaminhar ao Congresso Nacional um
projeto corrigindo os estragos feitos.
Terá sucesso? Com
uma enorme bancada oposicionista e com o fato de que o presidente da Câmara dos
Deputados, também oposicionista, indicou como relator o próprio proponente do
projeto original, na época ministro da educação, sugerem que o caminho para a
reversão daquela alteração da LDB será muito difícil e dependerá de
manifestações públicas massivas. E estas manifestações dependem da mobilização
dos estudantes das escolas públicas, os mais prejudicados por esse novo ensino
médio, inclusive porque em sua maioria tem como única fonte de aprendizado a
escola pública.
Uma terceira grande
mudança é no campo institucional, na forma de medidas para facilitar a
influência de entidades privadas em instituições públicas, inclusive e
especialmente, de educação: a lei 13.800, proposta por Temer e sancionada por
Bolsonaro em 2019. Essa lei permite que, por meio de repasses financeiros, instituições
privadas possam definir atividades a serem desenvolvidas em instituições
públicas, sem que isso passe pelas instâncias deliberativas destas últimas.
Alguém que se oponha
à tal lei poderia ser questionado com a pergunta “que mal há em empresas ou
pessoas físicas doarem dinheiro para instituições de pesquisa ou educacionais?”
Nenhum, claro. Mas não é isso que está em jogo, mesmo porque nada impede, nem
impedia, que sejam feitas doações a qualquer instituição pública de pesquisa ou
ensino. O que está em jogo é a possibilidade de que tal transferência de
recursos seja feita com destino definido apenas pelas próprias instituições
doadoras, sem precisar sequer da aprovação pelas instâncias deliberativas
públicas. Mais ainda: como os recursos podem ser transferidos diretamente para
pessoas – estudantes, pesquisadores, docentes e demais trabalhadores – seu
poder de sedução é enorme. Esses gastos são desprezíveis quando comparados com
os orçamentos das instituições púbicas, mas são capazes de direcionar os
investimentos destas últimas. Não é por acaso que instituições ligadas a
grandes empresas, empresários e empresárias tenham aumentado significativamente
suas ações junto às universidades públicas nos últimos anos.
Originalmente, a lei
13.800 impedia que as fundações ditas de apoio às universidades públicas e
credenciadas no MEC com base em lei de 1994 participassem de tais parcerias.
Mas em junho de 2019, uma alteração passou a permitir que tais fundações sejam
equiparadas com aquelas instituições, o que provoca uma relação promíscua ainda
maior entre as administrações públicas e os interesses privados.
A força política dos
grupos interessados naquela lei é muito grande, fato ilustrado pela reforma
tributária ora em discussão, a qual prevê a isenção de impostos sobre doações feitas
por dirigentes empresariais às instituições que essas mesmas pessoas controlam.
É bastante didático
ler o documento que encaminhou a medida provisória 851 de 2018, transformada na
lei 13.800. Esse documento faz enorme confusão entre instituições públicas e
privadas no mundo todo, em particular nos EUA. Também cria fantasias sobre os
valores dos fundos patrimoniais das grandes universidades públicas, confundidas
com os mesmos fundos de instituições privadas. Seja essa confusão fruto da má
intenção ou do desconhecimento, ela revela a euforia dos setores ultraliberais
na época, que não tinham receio de encontrar qualquer oposição significativa a
seu projeto e pouco se importavam com compatibilidade do que escreviam e a
realidade.
O recente desmonte
da educação não se esgota com os exemplos citados; eles formam apenas um
conjunto daqueles mais sedimentados. Como desfazer, pelo menos parcialmente,
todo esse desmonte da educação e da produção de conhecimento no país? Talvez a
resposta esteja com os estudantes, especialmente os estudantes das instituições
públicas, os maiores prejudicados por todas essas ações.
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