O que está em jogo no
caso do auxílio-saúde?
Jornal da USP em 27/4/2023, em colaboração com o professor Luiz Menna-Barreto, EACH USP
A USP tem tomado certas medidas que não parecem razoáveis ou legítimas. Uma dessas, recente e bastante questionável, inclusive do ponto de vista das pessoas excluídas, é a instituição de um auxílio financeiro para subsidiar as despesas com planos privados de saúde.
Esse auxílio deverá beneficiar apenas as pessoas que têm planos privados de saúde (até o limite definido pela reitoria ou o valor pago pela pessoa beneficiada, o que for menor). Consequentemente, ficam de fora as pessoas que, embora quisessem ter um plano de saúde, não têm recursos para custear a parte não coberta pela USP. (Alguns detalhes do projeto podem ser encontrados em matéria no Jornal da USP [1] e na Resolução que lhe deu origem [2].) Excluir os que, possivelmente, mais precisam não parece nada razoável.
Uma crítica também importante ao auxílio é o fato de ela ocorrer num momento
de depressão dos salários pagos a docentes e funcionários. Recursos a serem
destinados aos planos privados poderiam, sem dúvida, serem usados para o tão
necessário reajuste dos salários.
Além dessas, várias outras questões específicas sobre aspectos
práticos também merecem uma análise.
Benefício ao setor
privado e prejuízo à educação e às pessoas
Da forma que foi criada, o
auxílio não é parte da remuneração: a pessoa que o receber será fiel
depositária de recursos que pertencem, de fato, a uma empresa de saúde. Como os
recursos orçamentários da USP são considerados despesas educacionais e
computadas dessa forma para fins das exigências constitucionais, destiná-los a
empresas privadas de saúde parece uma forma de driblar as exigências legais.
Mesmo que não houvesse uma
exigência constitucional, não seria aceitável uma instituição educacional
pública destinar a empresas privadas de saúde recursos que deveriam ir à educação
pública.
Tal auxílio é uma espécie
de oxigênio financeiro para as empresas privadas de saúde, cujos comportamentos
aparentemente criminosos ficaram claro durante a pandemia de COVID-19. Por que subsidiar tais empresas?
Como o auxílio-saúde atinge
apenas quem tem algum plano privado de saúde, ele acaba por induzir as pessoas
a fazerem um. Por que reitoria e o conselho universitário querem isso?
Embora não haja um
detalhamento dos valores totais envolvidos, eles serão muitas vezes maiores do
que as contribuições transferidas ao Iamspe e, a depender da quantidade de adesões, poderá ser da
mesma ordem de magnitude que o orçamento total do HU. Essas
comparações sugerem um interesse muito maior em promover ações ligadas
ao setor privado do que ao setor público.
O que tem tornado os planos
privados de saúde mais atraentes nos últimos tempos é justamente o
desinvestimento na saúde pública; desinvestimento que se reflete por exemplo na
escassez de recursos destinados ao nosso Hospital Universitário.
Doentes não recebem o
auxílio-saúde
Despesas altas com saúde
ocorrem, tipicamente, em idades mais avançadas, portanto, provavelmente, após a
aposentadoria. Mas, aí, o auxílio não mais vigorará e os preços de planos de
saúde serão mais altos. Se os mesmos valores fossem incorporados nos salários
todos se beneficiariam igualmente.
O tempo de afastamento com
remuneração do servidor estatutário para tratamento de saúde é limitado.
Decorrido esse tempo, o funcionário deixa de receber o auxílio-saúde (ver ref.
[2]), exatamente quando mais precisa. Uma situação similar ocorre com os celetistas,
que deixarão de ter direito ao auxílio quando estiverem aposentados ou
afastados por razões de saúde.
Quebra de acordo e dano
à universidade
Por excluir os aposentados, tal auxílio, bem como os prêmios e bônus e os
cartões e vales, fazem com que a real remuneração dos docentes e funcionários,
ao se aposentarem, seja muito reduzida. Isso é, na prática, uma forma de driblar a lei pela qual as pessoas contribuíram para o sistema
previdenciário ao longo da vida e durante o período de aposentadoria; é uma
quebra de acordo e um drible na legislação.
Uma quebra de acordo por um
dos lados pode levar o outro lado a também quebrar acordos, o que seria péssimo
para uma instituição, em especial uma universidade. Isso pode ser um incentivo
à busca de atividades paralelas, que é um recado bem claro, “não coloque suas
expectativas na carreira docente”. Esse incentivo talvez vá ao encontro dos
interesses privados, agora tão presentes nas universidades públicas graças às possibilidades
abertas às fundações pela lei 13.800/2019.
A perda de renda com a aposentadoria também poderá fazer com que as
pessoas, para evitá-la, adiem a aposentadoria, deixando de
liberar vagas para os mais jovens. Considerando que grande parte dos
aposentados continua se dedicando à
pesquisa, ao ensino e à extensão, esse fato poderá provocar uma redução da capacidade de trabalho
da universidade.
Esse auxílio-saúde, bem
como os demais auxílios, bônus, prêmios e cartões, também é uma forma de
quebrar a isonomia entre as três universidades estaduais.
Conclusão
O embasamento legal para a
criação do auxílio em questão parece frágil, pois se resume a normas internas
da USP (a resolução 8358/2022 diz que o auxílio é baseado nos incisos I e IX do
Artigo 42 do Estatuto da USP [3]). Esse embasamento parece frágil, pois, como
já dito, recursos transferidos à USP são contabilizados como despesas
educacionais, não como recursos para subsidiar empresas de saúde. Também parece
muito frágil quanto ao perfil das pessoas excluídas, que coincide exatamente
com os que mais precisariam de auxílios como esse.
Enfim, fica o mistério. Por
que o Conselho Universitário criou esse programa?
[1] Matéria no Jornal da
USP, https://jornal.usp.br/institucional/usp-implanta-auxilio-saude-para-servidores-técnicos-e-docentes/.
[2] https://leginf.usp.br/?resolucao=resolucao-no-8358-de-16-de-dezembro-de-2022.
[3] Estatuto da USP, Artigo
42, e incisos I e IX: “Art. 42 Ao Reitor compete: I – administrar a
Universidade e representá-la em juízo ou fora dele; [...] IX – cumprir e fazer
cumprir as decisões do Conselho Universitário, de suas Comissões e dos
Conselhos Centrais [...]”.
Nenhum comentário:
Postar um comentário