A ciência perde seu ministério
Imediatamente depois de o vice-presidente Michel Temer
assumir interinamente a Presidência da República, em março de 2016, foi feita
uma alteração na estrutura ministerial, com a extinção do Ministério de
Ciência, Tecnologia e Inovação[i] e
a criação de um novo ministério, que passaria a acumular suas atividades com as
do Ministério das Comunicações.
Nesse
novo ministério, o CNPq e outras agências foram rebaixados para um nível
inferior ao que ocupavam no antigo MCTI. Não podia haver dúvidas, portanto,
quanto à (falta de) prioridade dada às atividades de pesquisa naquele governo
que assumia. Nesse novo modelo, o CNPq estava duplamente rebaixado: primeiro,
porque o ministério ao qual pertencia desapareceu e o novo passou a acumular outras
atividades; em segundo lugar, porque fora novamente rebaixado nesse novo
desenho ministerial.
Esses
fatos já eram suficientes para deixar claro o projeto daquele governo. Se
alguém ainda tivesse alguma dúvida, uma consulta ao documento “Uma ponte para o
futuro”, de outubro de 2015, do MDB (na época, PMDB), partido do então
vice-presidente, a sanaria. Metade dos itens arrolados naquele documento dizia
respeito, direta ou indiretamente, à redução do setor público e, portanto, das
atividades às quais se dedica, educação e ciência incluídas. Além disso, o
documento incluía a previsão de novos mecanismos de pressão sobre os
trabalhadores, inclusive salariais, mudanças no sistema previdenciário, com
redução das pensões, aposentadorias e outros benefícios, transferência de bens
e recursos ao setor privado, entre outras coisas que afetavam negativamente
toda a população.
As
consequências daquelas mudanças nos ministérios, bem como as propostas
resumidas no documento que fundamentou o governo que assumia, foram minimizadas
pela comunidade acadêmica, talvez inebriada pela propaganda. Pouquíssimas
entidades científicas e representativas de docentes e pesquisadores
manifestaram seu descontentamento, ou, pelo menos, sua preocupação.
A educação também é rebaixada
A educação também fazia parte do projeto, e não só quando aquela
Ponte criticava o fim do investimento mínimo no setor (medido em porcentagem da
arrecadação de impostos, previsto na Constituição). Em setembro de 2016, a Medida
Provisória 746, apelidada de “MP do ensino médio”, seguindo a mesma orientação,
fazia profundas alterações na LDB[ii].
Em fevereiro de 2017, a MP já estava convertida em lei. Novamente e talvez pelo
mesmo efeito inebriante, pouquíssimas foram as manifestações críticas e muitas
as omissões das universidades e das entidades representativas da comunidade
acadêmica do país.
Um engano
ou uma enganação?
A
ponte em direção à mercantilização da educação continuou a ser construída,
agora usando-se um falso argumento para justificar a redução dos orçamentos ao
setor. Vejamos qual.
Nos
EUA, a enorme maioria dos estudantes do ensino superior (cerca de 75%) está em
instituições públicas[iii].
Dos demais estudantes, a enorme maioria frequenta instituições privadas de
porte grande ou médio. Essas instituições ou não têm fundos patrimoniais (endowments)[iv]
ou os têm em quantidade muito pequena, cujo rendimento não tem nenhum
significado no seu custeio.
Apenas
uma pequeníssima fração dos estudantes do ensino superior daquele país, bem
menos do que 1% do total, frequenta instituições privadas cujos fundos
patrimoniais são realmente grandes, em alguns casos acima de um milhão de
dólares por aluno matriculado, e cujo rendimento contribui para o orçamento da
instituição de forma não insignificante.
Entretanto,
em setembro de 2018, uma medida provisória, convertida em lei em janeiro de
2019 (lei 13.800), propunha, para as universidades públicas brasileiras, a
criação de fundos patrimoniais, uma vez que, segundo sua justificativa[v], o
“financiamento das instituições públicas tem enfrentado dificuldades nos
últimos anos”[vi]. A justificativa continuava afirmando que “a experiência
internacional mostra que fundos patrimoniais representam fonte importante de
receita para instituições públicas”, citando, a seguir, Harvard, Stanford,
Princeton e Yale, nenhuma delas pública! Tal justificativa, saída do palácio
governamental, revela ou ignorância, ou má fé ou aposta na ignorância dos
demais por parte de quem a escreveu. Possivelmente, tudo isso junto. Como
propor para as universidades públicas do Brasil, um país em desenvolvimento,
práticas que não existem nem mesmo nas universidades públicas dos EUA, um país
rico, e apenas em algumas de suas pequenas universidades privadas?
2019
Com o resultado da eleição de 2018, os ataques ao setor
público se intensificaram, pois as poucas barreiras que poderiam segurá-los
estavam fragilizadas. Esses ataques incluíam a desqualificação de todo o
sistema de ensino e pesquisa públicos, em especial das universidades. Enfim, a
ponte estava concluída e desembocava, agora, em uma enorme avenida. Alguns
exemplos são tristes e lamentáveis.
Um
ministro da educação sugeriu que alunos e professores deveriam fazer suas preces
e declarar “Deus acima de tudo” antes das aulas[vii],
demonstrando um desrespeito total pela educação, pelos estudantes e pelos
professores. O fato que tal pessoa continuou no cargo até que sua tarefa fosse
concluída mostra quão fragilizada está a educação em nosso país.
As
universidades públicas brasileiras facilitam e promovem, de múltiplas formas, a
instalação de empresas júnior em seu interior, desenvolvem programas de
empreendedorismo, apoiam a startups, oferecem
cursos de marketing, publicidade e
propaganda. Não há dúvidas de qual é o viés ideológico, econômico e cultural desses
programas e atividades. Apesar disso, as universidades públicas são acusadas de
ter um viés marxista! E, ainda pior, as pessoas acreditam!
Não
é o caso de citar muitos exemplos, mas há um que não pode ser esquecido, por
revelar o nível de ignorância do governo e de seu ministro sobre o que é um
ambiente de estudo e trabalho, O segundo ocupante da cadeira do ministro da
educação não fica nada a dever ao anterior. As pessoas que vivem nas
universidades públicas sabem que durante todo o dia, incluindo o período
noturno, as salas de aulas então ocupadas por estudantes e professores. Nas
bibliotecas e salas de estudo, há grupos estudando, trabalhando e fazendo
exercícios. Os laboratórios didáticos e de pesquisa estão ativos. Seminários e colóquios
ocorrem todo o tempo, com a participação de estudantes, docentes e
pesquisadores. Por causa disso tudo, a universidade pública é, de longe, o
melhor local para um jovem estar. Nenhum outro lugar oferece aos jovens mais e
melhores oportunidades de uma vida produtiva e interessante do que as
universidades, ao mesmo tempo em que forma profissionais que atuarão em
benefício de toda a sociedade; em nenhum outro lugar com a mesma quantidade de
pessoas na mesma faixa etária que os estudantes universitários o ambiente é tão
saudável. Apesar disso, o ambiente universitário é acusado de ser exatamente o
que ele não é, uma balbúrdia – e há os que acreditam.
CNPq, Capes e MEC
O
país está avançando rapidamente na direção de um liberalismo sem limites. Tudo deve
ser negócio, mercadoria. Para facilitar tal projeto, as atividades de interesse
coletivo são desmontadas, abrindo o espaço para o setor privado; a educação pública
é agredida e desqualificada; o SUS está sob ataque; a emenda constitucional 95
(a do teto de gastos, de dezembro de 2016) proíbe o governo de gastar, ainda
que haja necessidade e recursos disponíveis. A previdência por repartição está
sendo desmontada, aumentando o espaço explorado pelo sistema mercantil de previdência
por capitalização. Cada um que compre a educação, a saúde, a aposentadoria, as
pensões e os seguros que conseguir. Como conhecimento também se compra,
inclusive no mercado internacional, por que a ciência, a tecnologia e a cultura
não seriam incluídos nisso?
CNPq
De
fato, estão sendo. A figura 1 mostra o orçamento anual do CNPq, atualizado para
valores de 2019 pelo INPC[viii],
em um período pouco superior a 20 anos. A queda nos últimos cinco anos é
bastante marcante, sendo que em 2018 foi cerca da metade do seu valor de cinco
anos antes.
Vale
observar que ao longo do período mostrado na figura, o orçamento do CNPq apresentou
algumas variações que merecem ser interpretadas. Entre aproximadamente 1995 e 2000
houve uma redução de cerca de 25% no valor real de seu orçamento. Essa redução
reflete tanto a situação econômica do país na época como o forte contexto
neoliberal de então: por que desenvolver o conhecimento científico e
tecnológico se isso pode ser comprado?
Vale
lembrar, ainda, um fato que tem sido pouco considerado. Entre 1996 e 2016 o
número de doutores atuando no Brasil aumentou por um fator perto de duas vezes
e meia. Isso fez com que a quantidade de recursos disponibilizados pelo CNPq,
por doutor, fosse reduzida, ao longo de duas décadas, para menos do que a terça
parte. Os grupos e laboratórios mais bem estabelecidos conseguiram, a duras
penas, ou manter suas atividades ou perder pouco, sendo poucos os que
conseguiram expandir. Mas os grupos instalados em instituições com menos
tradição na pesquisa não puderam usar plenamente sua capacidade de trabalho,
que aumentou, no período na mesma proporção do aumento do número de doutores em
atividade, por falta de recursos financeiros.
Figura 1 – Orçamento anual do CNPq, bilhão de reais
a valores de 2019
Vale observar que o crescimento real do orçamento do CNPq no
período entre meados da década de 2000 e 2015 foi bastante próximo do
crescimento do PIB no mesmo período, ambos da ordem de 60 a 70%, dependendo do
deflator usado e dos exatos anos considerados. Esse crescimento superou a queda
ocorrida na segunda metade da década de 1990, fazendo com que o orçamento do
CNPq atingisse sua maior marca histórica. Entretanto, como já dito, o
crescimento não acompanhou o aumento da capacidade de trabalho ocorrida no país
nas áreas de pesquisa e desenvolvimento.
Capes
Algumas características da realidade orçamentária da Capes
se assemelham às do CNPq. Entretanto, outras merecem uma análise adicional. A
figura 2 mostra o orçamento da Capes desde 1996, atualizado para 2019 pelo
INPC. Como no caso do CNPq, houve um decréscimo na última metade da década de
1990 dos mesmos cerca de 25% em termos reais. Também como no caso do CNPq,
houve uma enorme queda nos últimos anos, entretanto quantitativamente maior: em
2018 o orçamento anual da Capes foi menos da metade do que tinha sido em 2015,
perdendo cerca de 6 bilhões de reais no período.
O orçamento da Capes, entretanto, apresentou um crescimento,
entre 2004 e 2015, da ordem de seis vezes, muito maior do que o do CNPq. É
possível analisar esse aumento a partir de um exame do orçamento do MEC,
ministério do qual faz parte, no mesmo período (figura 3).
Figura 3 – Orçamento anual do MEC, bilhões de reais
a valores de 2019
Entre
meados da década de 2000 e 2015, aproximadamente, o orçamento do MEC foi
triplicado em termos reais. Parte desse crescimento deveu-se ao crescimento da
economia, aqueles 60 ou 70% citados. Outro fator bastante importante foi a
redução gradual da incidência da desvinculação de receitas da união nos
recursos da educação a partir de 2008, estando zerada em 2011. O aumento dos
recursos do MEC, da ordem de 100 bilhões de reais em um período entre 10 e 15
anos, permitiu aquele aumento muito grande nos recursos da Capes, sem
comprometer o orçamento das universidades federais, que aproximadamente
dobraram no mesmo período.
O Future-se
chegou
O
projeto denominado Future-se, segundo dados divulgados pelo MEC, implicará ou
implicaria na realocação de um volume enorme de recursos, podendo atingir
muitas dezenas de bilhões de reais, evidentemente saídos do próprio orçamento
daquele ministério. Um projeto dessa dimensão deveria ser antecedido de estudos
detalhados, com estimativas de suas consequências. Tais estudos deveriam,
claro, contar com a ampla participação das instituições afetadas. Feitos esses
estudos, caberia provar que os ganhos superam as perdas.
Mas nada disso aconteceu. Tudo o que foi apresentado para
defender o projeto corresponde a uma série de propagandas, com ideias
pré-concebidas e falsas, ilusões e frases de efeito.
São
muitos os aspectos negativos do projeto. Entre eles estão a flexibilização do
reconhecimento de diplomas obtidos no exterior, a venda de serviços por
hospitais universitários, afastando-os do SUS, e a destinação de recursos
públicos para o setor privado.
É
notável os fatos que o setor privado empresarial, assim como as universidades,
também não foi consultado. Apesar das inúmeras afirmações feitas pelos
defensores do Future-se sobre as vantagens do projeto para o desenvolvimento
das empresas do país, não houve qualquer manifestação em sua defesa vinda desse
setor. De fato, uma crítica já apontada ao projeto, e não respondida pelo
governo, é exatamente a não necessidade de novos instrumentos legais para se
atingir os objetivos que o projeto diz pretender atingir, o que explicaria o
desinteresse das empresas brasileiras, desnudando as intenções do Future-se.
Combinado
com os cortes nos órgãos de fomento, como Capes e CNPq, o Future-se mais parece
uma forma de fazer com que o estrangulamento orçamentário das instituições
federais de ensino superior as leve a aceitar um projeto que carreará parte dos
seus recursos para empresas privadas e OSs, que passarão a ter voz ativa em
suas decisões, comprometendo a autonomia universitária. Essa combinação fará
com que aquelas instituições percam recursos, os professores fiquem sob
pressão, inclusive salarial, a produção científica, cultural e acadêmica e os
desenvolvimentos tecnológicos virarão propriedade privada e as decisões, que
deveriam ter caráter apenas acadêmico e do interesse da sociedade brasileira, passariam
a ter influência de interesses pessoais e privados, comprometendo a autonomia
acadêmica das universidades. E, evidentemente, não haverá nenhum recurso
proveniente do setor privado que não corresponda apenas e um negócio, onde ele
ganha e a universidade perde.
Juntamente
com as pautas conservadores do atual governo, suas políticas educacionais,
científicas, tecnológicas e culturais comprometerão o futuro do país, quer em
sua autonomia e soberania frente a outros países, quer quanto ao seu
desenvolvimento social, sem nada oferecer em troca na área econômica.
Um
avanço assim tão grande e rápido do obscurantismo e do neoliberalismo
radicalizado ao extremo talvez tenha sido possível porque não agimos de forma
suficientemente intensa e na época adequada. É necessário quebrar essa inércia,
aumentando a mobilização, tanto atuando em nossas entidades – sociedades
científicas, associações profissionais, sindicatos, associações estudantis etc.
–, como nos órgãos colegiados das nossas instituições de ensino e pesquisa.
[i] O Ministério da
Cultura também foi extinto na mesma data, sendo recriado, após duras críticas,
dois meses depois. Em primeiro de janeiro de 2019, ele foi novamente extinto.
[ii]
Entre
outros aspectos, as alterações na LDB criaram a possibilidade de professores
sem licenciatura no ensino médio e de convênios com entidades privadas para a
oferta de aulas, inclusive a distância, de matérias curriculares.
[iii] A enorme
maioria da produção científica daquele país também é feita por instituições
públicas, universitárias ou não.
[iv]
Fundo
patrimonial é uma quantidade de recursos, em dinheiro ou bens, cujo rendimento
é usado para a manutenção, ainda que parcial, de uma instituição, mas cujo
patrimônio deve ser preservado.
[v]
A
MP e sua justificativa podem ser consultadas neste endereço, https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=5EFA906535E509746AA48ADD4DA179F4.proposicoesWebExterno2?codteor=1696057&filename=MPV+851/2018
[vi]
Uma
frase mais concordante com a realidade seria “tendo em vista as dificuldades
financeiras que estamos impondo às universidades e aos institutos federais”.
[vii] Talvez, um
ministro da saúde que mandasse pacientes e trabalhadores da saúde dizerem o
mesmo antes de cirurgias, consultas e exames cairia imediatamente e seria
encaminhado ou a uma delegacia ou a um serviço de saúde mental.
[viii]
Foi feita
uma média móvel de três em três anos para evitar que pequenas irregularidades
dificultassem a percepção do todo.
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