Publicado na versão eletrônica de Caros Amigos,
14/março/2017
As últimas três administrações
da Universidade de São Paulo (USP), o que corresponde a um período pouco
superior a dez anos, têm implementado planos e ações extremamente dispendiosos,
aparentemente, desconectados uns dos outros e sem justificativa acadêmica, educacional
ou científica. Se analisadas individualmente, aqueles planos e ações ou parecem
insensatos, refletindo peculiaridades da personalidade do ou da ocasional
ocupante da reitoria, ou cada um deles exige uma justificativa diferente,
válida apenas para aquele ato ou determinação.
Apenas para relembrar algumas
das ações, aqui vai uma breve lista. Uma delas foi a aquisição de diversos
imóveis sem que houvesse nenhuma razão ou demanda acadêmica para isso e sem que
esses imóveis, em qualquer aspecto, melhorassem a universidade. Outra ação foi
“reforçar” a iluminação na Cidade Universitária, muitas vezes colocando um novo
poste de luz embaixo de cada velho poste de luz (que continua em uso), e
mantendo às escuras regiões que eram escuras. Mais uma ação desconexa do mundo
acadêmico: a criação e o desaparecimento, ambos surpreendentes, de um prêmio
financeiro (que atingiu, a valores atualizados, cerca de R$ 5 mil ao ano) dado
a professores e demais trabalhadores da USP.
Outras ações e planos incluem
a compra de uma caríssima nuvem de computação superdimensionada e subutilizada;
a reforma cara, suntuosa e acadêmica e administrativamente desnecessária de um
edifício para ser utilizado pela reitoria; o financiamento de projetos de
pesquisa que, sabia-se de antemão, seria descontinuado, gastando-se dinheiro
sem que houvesse o retorno esperado; a abertura (e posterior fechamento) de
inúteis escritórios no exterior. Embora essa lista de iniciativas das últimas
gestões, empreendidas sem uma clara razão acadêmica, esteja incompleta, é
necessário lembrar que a USP começou, em 2003/2004, a guardar recursos no
banco, chegando, em 2011, a ter um ano inteiro de orçamento em caixa (mais do
que R$ 5 bilhões a valores deste início de 2017). Por que isso?
Devemos notar que essas ações
ocorreram em um período no qual, graças a uma recuperação econômica, coisa que
não ocorria no estado de São Paulo desde 1980, a arrecadação de ICMS (Imposto
sobre Circulação De Mercadorias e Serviços) paulista cresceu muito, fazendo com
que o orçamento real (corrigido pela inflação) da USP crescesse mais de 50% a
partir de 2003, já considerando a crise dos últimos dois anos, oferecendo uma
oportunidade única, nas últimas várias décadas, para que a universidade fizesse
um planejamento para seu crescimento. Mas as sucessivas administrações
reitorais preferiram guardar dinheiro em caixa ou gastá-lo em coisas que não
têm o necessário retorno acadêmico.
Há alguns meses, argumentava-se [i] que em lugar de usar diferentes
hipóteses para explicar cada uma das ações, aparentemente desconexas, das três
gestões reitorais da USP ao longo dos últimos dez ou doze anos, o conjunto
delas podia ser explicado por uma única hipótese: a USP não pode crescer e, de
preferência, deve diminuir. Essa hipótese, além de explicar as muitas ações de
sucessivas administrações da universidade, está totalmente de acordo com o
perfil ideológico dos governantes paulistas no período, que entendem, nas
palavras do secretário da educação, que o estado deve se ocupar apenas de
missões “elementares e básicas. Segurança e Justiça, como emblemáticas. Tudo o
mais, deveria ser providenciado pelos particulares.”[ii] (Considerando-se que tais afirmações
saíram do núcleo do governo estadual paulista, “segurança e justiça” devem
significar polícia e repressão e que os particulares devem providenciar “tudo o
mais” significa que cada um compre o que conseguir, saúde, educação e
previdência incluídas.) Para evitar que o enorme crescimento de seu orçamento
redundasse em mais estudantes e professores, melhores condições de trabalho e
de estudo e mais produção científica e cultural, podia-se fazer qualquer coisa
com os recursos da USP: guardar em caixa ou gastar com coisas pouco ou nada
ligadas ao desenvolvimento acadêmico.
Desidratando o País
Os últimos acontecimentos no
País, no estado de São Paulo e na USP, reforçam bastante a hipótese de que esta
não pode crescer: o projeto não é apenas “desidratar” a USP. O projeto que,
após o golpe, tornou-se hegemônico, é “desidratar” o País todo, reduzir o setor
público ao mínimo – e, portanto, aumentar o setor privado ao máximo que se
conseguir. Para isso, vendem-se poços de petróleo, reduzem-se benefícios
previdenciários, limitam‑se as despesas governamentais prescritas pela
Constituição, privatizam-se serviços públicos, desfazem-se patrimônios públicos
e “desidratam-se” as universidades públicas.
Dentro dessa perspectiva de
redução do estado – e da USP – ao mínimo possível, considerando, claro, a força
que os setores privatistas têm, novas investidas contra o ensino público, a
pesquisa e a extensão de serviços continuam a ocorrer. Em nível federal, os
exemplos incluem a fusão do Ministério de Ciência e Tecnologia com o de
Comunicação, o rebaixamento hierárquico de órgãos de fomento e a transferência
de recursos de alíneas orçamentárias garantidas para alíneas incertas[iii].
No estado paulista, houve uma
série de agressões inaceitáveis à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de
São Paulo (Fapesp), órgão governamental que tem, por constituição, um orçamento
autônomo correspondente à 1% da arrecadação de impostos estaduais. Em meados de
2016 o governador afirmou que aquela instituição financia pesquisa “sem
utilidade prática”; no final do ano, o orçamento da Fapesp era cortado em cerca
de 11%, em desrespeito à Constituição estadual. (Posteriormente, esse corte foi
disfarçado: o orçamento seria mantido, mas aquele valor cortado deveria ter
destino certo, pagando despesas de ciência e tecnologia que deveriam ser
cobertas por outros recursos do orçamentários. Entretanto, a lei orçamentária
de 2017 parece não ter sido alterada até agora.)
Ainda em nível federal, mas
com desdobramentos estaduais, as alterações da LDB (a famosa “MP do ensino
médio”, agora transformada em lei) acabam por permitir que qualquer um possa
ser professor na educação básica, sem necessidade de licenciatura, o que terá
enormes impactos no funcionamento das universidades brasileiras.
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A USP e seus amigos
A redução, ou “desidratação”,
da USP continua a ser feita. Um novo programa de demissão incentivada – aquele
programa no qual se gasta recursos públicos para enxugar o setor público[iv] – foi implantado no final de 2016. Não
bastasse, agora, neste início de 2017, surgem novas mudanças na legislação que
rege a USP, exigindo que certas orientações orçamentárias restritivas,
incluindo demissões e não contratações, sejam obrigatoriamente adotadas[v],
ainda que se tenha os recursos e se apresente a necessidade acadêmica de
contratações. Vale observar que essas restrições orçamentárias se assemelham
muito com a Emenda Constitucional 95 (antiga PEC do fim do mundo), e, por isso,
essa proposta foi apelidada de “PEC do fim da USP”.
O mesmo pacote de medidas
inclui uma proporção de 40% para 60% entre a quantidade de docentes e
funcionários técnicos ou administrativos. Ora, tal tipo de proporção depende da
área de conhecimento, das diferentes atividades desenvolvidas pela instituição,
dos cursos, da proporção entre estudantes de graduação e de pós-graduação, das
necessidades específicas da população abrangida e dos estudantes, entre vários
outros fatores. De onde saíram aquelas proporções não se sabe, pois não foi
apresentado nenhum estudo. Entretanto, elas poderão ser usadas como argumento
para justificar um novo plano de demissão de funcionários, ou, como
justificativa para a eliminação de um hospital, ou a não abertura de um curso
em uma área muito demandante de funcionários especializados. Além disso, aquela
definição contribuirá para uma sobrecarga de trabalho dos docentes, já bastante
grande.
Além disso, nos últimos meses,
várias outras iniciativas têm sido tomadas, que vão desde o fechamento de
creches até o continuado sucateamento do hospital universitário. Ao mesmo
tempo, e atropelando seus colegiados, inclusive o Conselho Universitário – só
informado do fato após sua consumação –, a reitoria da USP se aconselhou com
empresa privada de consultoria, no caso a McKinsey & Company, multinacional
especializada na defesa de interesses empresariais. Paralelamente a isso, a
administração central da USP escolhe alguns amigos – coisa necessária, pois um
dos documentos assinados pela reitoria envolvendo aquela empresa de consultoria
citava tais amigos antes que eles aparecessem, uma espécie de “amigos secretos”
– e os chama de Amigos da USP. Poderíamos esperar que os amigos da USP fossem
pessoas de destaque na tecnologia, nas artes, na produção cultural, na ciência
ou em qualquer área para a qual uma universidade poderia contribuir. Mas, não.
Os Amigos da USP são um grupo formado por bilionários ou herdeiros de
bilionários, alguns deles acionistas de empresas acusadas de sonegarem
impostos, parte dos quais deveria ser destinada à educação em todos os níveis,
superior inclusive.
Enfim, os escolhidos podem ser
amigos dos ocupantes de cargos na reitoria, não da Universidade.
Os inimigos da USP
Ao mesmo tempo em que a reitoria da
USP escolhe seus amigos, escolhe, também, seus inimigos: seus estudantes, seus
professores e seus funcionários.
Estudantes e centros
acadêmicos estão sendo pressionados para abandonarem os espaços que utilizam há
muito tempo, com a desculpa que haveria irregularidades na ocupação. Ora,
práticas realmente irregulares são comuns em diversos casos que passaram e
passam “despercebidos” por sucessivas reitorias; por que apontar os canhões
para entidades estudantis? Manifestações estudantis típicas têm sido tratadas
como faltas graves e passíveis de punição, já há vários anos, sendo que algumas
dessas punições, ou tentativas de punição, vêm ocorrendo em nível policial e
jurídico, tratadas muitas vezes como se fossem crimes.
Esse tipo de relacionamento,
que a administração da USP tem adotado, força estudantes a enfrentarem situações
totalmente diferentes daquelas que esperaríamos que estivessem enfrentando.
Além disso, há uma enorme desproporção entre os ataques aos estudantes – feitos
por uma enorme instituição – e a capacidade de defesa que estes possam ter.
Mas a reitoria da USP tem
outros inimigos: os funcionários técnicos e administrativos. De um lado, a
reitoria gasta enormes recursos para se livrar de seus funcionários,
incentivando-os a se desligarem.[vi] De outro lado, pressiona de forma
ilegítima seu sindicato a deixar o espaço que ocupa há várias décadas. Enfim, a
reitoria da USP gasta (muito) dinheiro para se ver livre de seus trabalhadores
e faz tudo para enfraquecer sua organização: só inimigos são tratados assim.
A administração da USP não se
esqueceu de incluir os docentes entre seus inimigos. Aqui, a caracterização da
inimizade é múltipla. Primeiro, esticando o prazo de instabilidade após o
concurso público de ingresso além do que a Constituição do País determina.
Segundo exemplo, mudanças recentes na legislação da USP tratam os docentes como
se estes fossem irresponsáveis e precisassem ser vigiados e tutelados, todo o
tempo, por meio de período de experimentação, estágio probatório, acompanhamento,
avaliação periódica etc., e cujas consequências podem ser o desligamento da USP
ou a mudança do regime de trabalho, ainda que não se tenha cometido nenhum
deslize ou descuido com as atividades acadêmicas. Essas alterações se somam a
uma “progressão horizontal” que força os docentes a se submeterem múltiplas
vezes a uma avaliação centralizada. Ora, há um cinismo nisso tudo. Essa
desconfiança dos docentes está em total desacordo com a realidade, a qual
mostra um enorme crescimento da produção da USP ao longo dos últimos 20 anos em
termos de teses orientadas, livros e artigos especializados, organização de e
participação em congressos, alunos matriculados, conclusões de curso e tudo o
mais que uma universidade deve fazer, sem que tenha havido um aumento
equivalente no número de seus trabalhadores[vii]. Além disso, a USP é uma das universidades brasileiras mais bem colocadas
em qualquer avaliação que se faça. Por que tratar com desconfiança seus
docentes se não há nenhum problema detectado ou explicitado?
Evidentemente, não há nenhuma
intenção real de avaliar coisa alguma. Em primeiro lugar, é humanamente
impossível um pequeníssimo grupo de pessoas, com várias outras atribuições,
conseguir julgar criteriosamente a produção acadêmica de seis mil docentes que,
combinando áreas de pesquisa, temas de orientação de teses, atividades
didáticas, assuntos abordados em trabalhos acadêmicos de vários tipos,
atividades de extensão, participação em programas de cooperação nacionais e
internacionais, podem incluir bem mais do que uma dezena de milhar de temas,
talvez algumas dezenas de milhares! E construir um aparato suficiente para essa
tarefa seria um absurdo, pois os recursos necessários para tal seriam muito
mais bem aproveitados se destinados a outras finalidades.
Em segundo lugar, em um debate
ocorrido no campus do Butantã, pessoas que colaboraram com os projetos do
sistema de avaliação da USP reconheceram não ter experiência no assunto,
deixando claro que se trata de um jogo de cena, cujo real objetivo –
centralizar ainda mais o poder e enxugar a USP, contribuindo para o enxugamento
do setor público como um todo – não era explicitado. O que se pretende é apenas
dar à reitoria instrumentos necessários para controlar os contratos docentes,
coisa que ficou evidente nas novas investidas da reitoria.
Em resumo, ao escolher como
seus inimigos seus trabalhadores, docentes ou não, e seus estudantes, a
reitoria da USP põe em risco um dos mais preciosos ingredientes para o bom
funcionamento de uma instituição: o sentimento de pertencimento de sua
comunidade.
Resistir é preciso
A
reitoria da USP conta com o apoio do governo estadual e de uma parte grande dos
meios de comunicação, basicamente aquela financiada pelos grandes anunciantes.
(Esse financiamento ocorre não apenas por causa da quantidade de leitores,
ouvintes ou espectadores que aqueles meios de comunicação atingem, mas, talvez
principalmente, pelos discursos que reproduz e pelo projeto de País que
defendem.)
Esse
ataque mais intenso que a USP vem sofrendo ocorre, também, nas demais
instituições públicas de ensino superior e, muito provavelmente, se
intensificará, em particular nas instituições federais, tanto por causa da
Emenda Constitucional 95 (antiga PEC do fim do mundo) como pelo projeto
político, social e econômico defendido e imposto pelos detentores do poder após
o golpe de 2016.
Apenas
uma resistência realmente intensa e firme conseguirá impedir outras ações
destrutivas do patrimônio intelectual paulista e brasileiro. E tal resistência
dependerá de uma união de todos aqueles que defendem a universidade pública,
gratuita, de qualidade e que responda às necessidades do País e aos anseios da
população.
Referências
[i]
Ver o artigo “Como ‘desidratar” uma universidade”,
www.carosamigos.com.br/index.php/artigos-e-debates/7492-como-desidratar-uma-universidade
[ii]
Ver o (lamentável) artigo “A sociedade órfã” no sítio da secretaria estadual
paulista de educação, www.educacao.sp.gov.br/noticias/a-sociedade-orfa
[iii]
Ver, por exemplo, a posição da SBPC e de associações científicas brasileiras em http://www.sbpcnet.org.br/site/noticias/materias/detalhe.php?id=5776
[iv]
O discurso de que o setor público brasileiro é excessivamente grande é
totalmente falso e não sobrevive a uma consulta a dados internacionais, seja em
termos do percentual do PIB que dispões, seja em termos do percentual da força
de trabalho. No Brasil, menos do que 10% dos trabalhadores são empregados pelo
setor público. Itália, Argentina, Uruguai e EUA empregam uma vez e meia esse
valor. Vários países europeus, em especial aqueles nos quais o bem-estar social
é mais marcante, têm 20% a 30% de seus trabalhadores no setor público. Ver, por
exemplo, http://blogolitica.blogspot.com.br/2012/09/com-os-recursos-disponiveis-na.html
[v]
Ver o artigo “O fim da USP” em http://www.adusp.org.br/index.php/democracia-usp/2807-o-fim-da-usp
[vi]
No estado onde a educação superior é a mais privatizada do país, seja em termo
de matrículas de graduação em relação à população, seja em vagas disponíveis
por concluinte do ensino médio, seja na divisão entre matrículas no setor
público versus privado, dispensar funcionários é um absurdo. Se houvesse (não
há) excesso de funcionários em algum setor, um remanejamento que permitisse o
aumento do número de estudantes seria muito melhor.
[vii] Ver,
por exemplo, a tabela 1 do documento “USP: crise financeira’ ou crise de
financiamento?” em http://www.adusp.org.br/files/cadernos/financUSP.pdf
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