23 de mai. de 2017

Ainda a desidratação da USP


Publicado na versão eletrônica de Caros Amigos, 14/março/2017

As últimas três administrações da Universidade de São Paulo (USP), o que corresponde a um período pouco superior a dez anos, têm implementado planos e ações extremamente dispendiosos, aparentemente, desconectados uns dos outros e sem justificativa acadêmica, educacional ou científica. Se analisadas individualmente, aqueles planos e ações ou parecem insensatos, refletindo peculiaridades da personalidade do ou da ocasional ocupante da reitoria, ou cada um deles exige uma justificativa diferente, válida apenas para aquele ato ou determinação.

Apenas para relembrar algumas das ações, aqui vai uma breve lista. Uma delas foi a aquisição de diversos imóveis sem que houvesse nenhuma razão ou demanda acadêmica para isso e sem que esses imóveis, em qualquer aspecto, melhorassem a universidade. Outra ação foi “reforçar” a iluminação na Cidade Universitária, muitas vezes colocando um novo poste de luz embaixo de cada velho poste de luz (que continua em uso), e mantendo às escuras regiões que eram escuras. Mais uma ação desconexa do mundo acadêmico: a criação e o desaparecimento, ambos surpreendentes, de um prêmio financeiro (que atingiu, a valores atualizados, cerca de R$ 5 mil ao ano) dado a professores e demais trabalhadores da USP. 
Outras ações e planos incluem a compra de uma caríssima nuvem de computação superdimensionada e subutilizada; a reforma cara, suntuosa e acadêmica e administrativamente desnecessária de um edifício para ser utilizado pela reitoria; o financiamento de projetos de pesquisa que, sabia-se de antemão, seria descontinuado, gastando-se dinheiro sem que houvesse o retorno esperado; a abertura (e posterior fechamento) de inúteis escritórios no exterior. Embora essa lista de iniciativas das últimas gestões, empreendidas sem uma clara razão acadêmica, esteja incompleta, é necessário lembrar que a USP começou, em 2003/2004, a guardar recursos no banco, chegando, em 2011, a ter um ano inteiro de orçamento em caixa (mais do que R$ 5 bilhões a valores deste início de 2017). Por que isso?
Devemos notar que essas ações ocorreram em um período no qual, graças a uma recuperação econômica, coisa que não ocorria no estado de São Paulo desde 1980, a arrecadação de ICMS (Imposto sobre Circulação De Mercadorias Serviços) paulista cresceu muito, fazendo com que o orçamento real (corrigido pela inflação) da USP crescesse mais de 50% a partir de 2003, já considerando a crise dos últimos dois anos, oferecendo uma oportunidade única, nas últimas várias décadas, para que a universidade fizesse um planejamento para seu crescimento. Mas as sucessivas administrações reitorais preferiram guardar dinheiro em caixa ou gastá-lo em coisas que não têm o necessário retorno acadêmico.
Há alguns meses, argumentava-se [i] que em lugar de usar diferentes hipóteses para explicar cada uma das ações, aparentemente desconexas, das três gestões reitorais da USP ao longo dos últimos dez ou doze anos, o conjunto delas podia ser explicado por uma única hipótese: a USP não pode crescer e, de preferência, deve diminuir. Essa hipótese, além de explicar as muitas ações de sucessivas administrações da universidade, está totalmente de acordo com o perfil ideológico dos governantes paulistas no período, que entendem, nas palavras do secretário da educação, que o estado deve se ocupar apenas de missões “elementares e básicas. Segurança e Justiça, como emblemáticas. Tudo o mais, deveria ser providenciado pelos particulares.”[ii] (Considerando-se que tais afirmações saíram do núcleo do governo estadual paulista, “segurança e justiça” devem significar polícia e repressão e que os particulares devem providenciar “tudo o mais” significa que cada um compre o que conseguir, saúde, educação e previdência incluídas.) Para evitar que o enorme crescimento de seu orçamento redundasse em mais estudantes e professores, melhores condições de trabalho e de estudo e mais produção científica e cultural, podia-se fazer qualquer coisa com os recursos da USP: guardar em caixa ou gastar com coisas pouco ou nada ligadas ao desenvolvimento acadêmico.

Desidratando o País
Os últimos acontecimentos no País, no estado de São Paulo e na USP, reforçam bastante a hipótese de que esta não pode crescer: o projeto não é apenas “desidratar” a USP. O projeto que, após o golpe, tornou-se hegemônico, é “desidratar” o País todo, reduzir o setor público ao mínimo – e, portanto, aumentar o setor privado ao máximo que se conseguir. Para isso, vendem-se poços de petróleo, reduzem-se benefícios previdenciários, limitam‑se as despesas governamentais prescritas pela Constituição, privatizam-se serviços públicos, desfazem-se patrimônios públicos e “desidratam-se” as universidades públicas.
Dentro dessa perspectiva de redução do estado – e da USP – ao mínimo possível, considerando, claro, a força que os setores privatistas têm, novas investidas contra o ensino público, a pesquisa e a extensão de serviços continuam a ocorrer. Em nível federal, os exemplos incluem a fusão do Ministério de Ciência e Tecnologia com o de Comunicação, o rebaixamento hierárquico de órgãos de fomento e a transferência de recursos de alíneas orçamentárias garantidas para alíneas incertas[iii].
No estado paulista, houve uma série de agressões inaceitáveis à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), órgão governamental que tem, por constituição, um orçamento autônomo correspondente à 1% da arrecadação de impostos estaduais. Em meados de 2016 o governador afirmou que aquela instituição financia pesquisa “sem utilidade prática”; no final do ano, o orçamento da Fapesp era cortado em cerca de 11%, em desrespeito à Constituição estadual. (Posteriormente, esse corte foi disfarçado: o orçamento seria mantido, mas aquele valor cortado deveria ter destino certo, pagando despesas de ciência e tecnologia que deveriam ser cobertas por outros recursos do orçamentários. Entretanto, a lei orçamentária de 2017 parece não ter sido alterada até agora.)
Ainda em nível federal, mas com desdobramentos estaduais, as alterações da LDB (a famosa “MP do ensino médio”, agora transformada em lei) acabam por permitir que qualquer um possa ser professor na educação básica, sem necessidade de licenciatura, o que terá enormes impactos no funcionamento das universidades brasileiras.



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Mais sobre política educacional? Veja o índice do livro "Um Diagnóstico da Educação Brasileira e de seu Financiamento" clicando aqui.
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A USP e seus amigos
A redução, ou “desidratação”, da USP continua a ser feita. Um novo programa de demissão incentivada – aquele programa no qual se gasta recursos públicos para enxugar o setor público[iv] – foi implantado no final de 2016. Não bastasse, agora, neste início de 2017, surgem novas mudanças na legislação que rege a USP, exigindo que certas orientações orçamentárias restritivas, incluindo demissões e não contratações, sejam obrigatoriamente adotadas[v], ainda que se tenha  os recursos e se apresente a necessidade acadêmica de contratações. Vale observar que essas restrições orçamentárias se assemelham muito com a Emenda Constitucional 95 (antiga PEC do fim do mundo), e, por isso, essa proposta foi apelidada de “PEC do fim da USP”.
O mesmo pacote de medidas inclui uma proporção de 40% para 60% entre a quantidade de docentes e funcionários técnicos ou administrativos. Ora, tal tipo de proporção depende da área de conhecimento, das diferentes atividades desenvolvidas pela instituição, dos cursos, da proporção entre estudantes de graduação e de pós-graduação, das necessidades específicas da população abrangida e dos estudantes, entre vários outros fatores. De onde saíram aquelas proporções não se sabe, pois não foi apresentado nenhum estudo. Entretanto, elas poderão ser usadas como argumento para justificar um novo plano de demissão de funcionários, ou, como justificativa para a eliminação de um hospital, ou a não abertura de um curso em uma área muito demandante de funcionários especializados. Além disso, aquela definição contribuirá para uma sobrecarga de trabalho dos docentes, já bastante grande.
Além disso, nos últimos meses, várias outras iniciativas têm sido tomadas, que vão desde o fechamento de creches até o continuado sucateamento do hospital universitário. Ao mesmo tempo, e atropelando seus colegiados, inclusive o Conselho Universitário – só informado do fato após sua consumação –, a reitoria da USP se aconselhou com empresa privada de consultoria, no caso a McKinsey & Company, multinacional especializada na defesa de interesses empresariais. Paralelamente a isso, a administração central da USP escolhe alguns amigos – coisa necessária, pois um dos documentos assinados pela reitoria envolvendo aquela empresa de consultoria citava tais amigos antes que eles aparecessem, uma espécie de “amigos secretos” – e os chama de Amigos da USP. Poderíamos esperar que os amigos da USP fossem pessoas de destaque na tecnologia, nas artes, na produção cultural, na ciência ou em qualquer área para a qual uma universidade poderia contribuir. Mas, não. Os Amigos da USP são um grupo formado por bilionários ou herdeiros de bilionários, alguns deles acionistas de empresas acusadas de sonegarem impostos, parte dos quais deveria ser destinada à educação em todos os níveis, superior inclusive.
Enfim, os escolhidos podem ser amigos dos ocupantes de cargos na reitoria, não da Universidade.

Os inimigos da USP
Ao mesmo tempo em que a reitoria da USP escolhe seus amigos, escolhe, também, seus inimigos: seus estudantes, seus professores e seus funcionários.
Estudantes e centros acadêmicos estão sendo pressionados para abandonarem os espaços que utilizam há muito tempo, com a desculpa que haveria irregularidades na ocupação. Ora, práticas realmente irregulares são comuns em diversos casos que passaram e passam “despercebidos” por sucessivas reitorias; por que apontar os canhões para entidades estudantis? Manifestações estudantis típicas têm sido tratadas como faltas graves e passíveis de punição, já há vários anos, sendo que algumas dessas punições, ou tentativas de punição, vêm ocorrendo em nível policial e jurídico, tratadas muitas vezes como se fossem crimes.
Esse tipo de relacionamento, que a administração da USP tem adotado, força estudantes a enfrentarem situações totalmente diferentes daquelas que esperaríamos que estivessem enfrentando. Além disso, há uma enorme desproporção entre os ataques aos estudantes – feitos por uma enorme instituição – e a capacidade de defesa que estes possam ter.
Mas a reitoria da USP tem outros inimigos: os funcionários técnicos e administrativos. De um lado, a reitoria gasta enormes recursos para se livrar de seus funcionários, incentivando-os a se desligarem.[vi] De outro lado, pressiona de forma ilegítima seu sindicato a deixar o espaço que ocupa há várias décadas. Enfim, a reitoria da USP gasta (muito) dinheiro para se ver livre de seus trabalhadores e faz tudo para enfraquecer sua organização: só inimigos são tratados assim.
A administração da USP não se esqueceu de incluir os docentes entre seus inimigos. Aqui, a caracterização da inimizade é múltipla. Primeiro, esticando o prazo de instabilidade após o concurso público de ingresso além do que a Constituição do País determina. Segundo exemplo, mudanças recentes na legislação da USP tratam os docentes como se estes fossem irresponsáveis e precisassem ser vigiados e tutelados, todo o tempo, por meio de período de experimentação, estágio probatório, acompanhamento, avaliação periódica etc., e cujas consequências podem ser o desligamento da USP ou a mudança do regime de trabalho, ainda que não se tenha cometido nenhum deslize ou descuido com as atividades acadêmicas. Essas alterações se somam a uma “progressão horizontal” que força os docentes a se submeterem múltiplas vezes a uma avaliação centralizada. Ora, há um cinismo nisso tudo. Essa desconfiança dos docentes está em total desacordo com a realidade, a qual mostra um enorme crescimento da produção da USP ao longo dos últimos 20 anos em termos de teses orientadas, livros e artigos especializados, organização de e participação em congressos, alunos matriculados, conclusões de curso e tudo o mais que uma universidade deve fazer, sem que tenha havido um aumento equivalente no número de seus trabalhadores[vii]. Além disso, a USP é uma das universidades brasileiras mais bem colocadas em qualquer avaliação que se faça. Por que tratar com desconfiança seus docentes se não há nenhum problema detectado ou explicitado?
Evidentemente, não há nenhuma intenção real de avaliar coisa alguma. Em primeiro lugar, é humanamente impossível um pequeníssimo grupo de pessoas, com várias outras atribuições, conseguir julgar criteriosamente a produção acadêmica de seis mil docentes que, combinando áreas de pesquisa, temas de orientação de teses, atividades didáticas, assuntos abordados em trabalhos acadêmicos de vários tipos, atividades de extensão, participação em programas de cooperação nacionais e internacionais, podem incluir bem mais do que uma dezena de milhar de temas, talvez algumas dezenas de milhares! E construir um aparato suficiente para essa tarefa seria um absurdo, pois os recursos necessários para tal seriam muito mais bem aproveitados se destinados a outras finalidades.
Em segundo lugar, em um debate ocorrido no campus do Butantã, pessoas que colaboraram com os projetos do sistema de avaliação da USP reconheceram não ter experiência no assunto, deixando claro que se trata de um jogo de cena, cujo real objetivo – centralizar ainda mais o poder e enxugar a USP, contribuindo para o enxugamento do setor público como um todo – não era explicitado. O que se pretende é apenas dar à reitoria instrumentos necessários para controlar os contratos docentes, coisa que ficou evidente nas novas investidas da reitoria.
Em resumo, ao escolher como seus inimigos seus trabalhadores, docentes ou não, e seus estudantes, a reitoria da USP põe em risco um dos mais preciosos ingredientes para o bom funcionamento de uma instituição: o sentimento de pertencimento de sua comunidade.

Resistir é preciso
A reitoria da USP conta com o apoio do governo estadual e de uma parte grande dos meios de comunicação, basicamente aquela financiada pelos grandes anunciantes. (Esse financiamento ocorre não apenas por causa da quantidade de leitores, ouvintes ou espectadores que aqueles meios de comunicação atingem, mas, talvez principalmente, pelos discursos que reproduz e pelo projeto de País que defendem.)
Esse ataque mais intenso que a USP vem sofrendo ocorre, também, nas demais instituições públicas de ensino superior e, muito provavelmente, se intensificará, em particular nas instituições federais, tanto por causa da Emenda Constitucional 95 (antiga PEC do fim do mundo) como pelo projeto político, social e econômico defendido e imposto pelos detentores do poder após o golpe de 2016.
Apenas uma resistência realmente intensa e firme conseguirá impedir outras ações destrutivas do patrimônio intelectual paulista e brasileiro. E tal resistência dependerá de uma união de todos aqueles que defendem a universidade pública, gratuita, de qualidade e que responda às necessidades do País e aos anseios da população.


Referências

[i]               Ver o artigo “Como ‘desidratar” uma universidade”, www.carosamigos.com.br/index.php/artigos-e-debates/7492-como-desidratar-uma-universidade
[ii]              Ver o (lamentável) artigo “A sociedade órfã” no sítio da secretaria estadual paulista de educação, www.educacao.sp.gov.br/noticias/a-sociedade-orfa
[iii]             Ver, por exemplo, a posição da SBPC e de associações científicas brasileiras em http://www.sbpcnet.org.br/site/noticias/materias/detalhe.php?id=5776
[iv]             O discurso de que o setor público brasileiro é excessivamente grande é totalmente falso e não sobrevive a uma consulta a dados internacionais, seja em termos do percentual do PIB que dispões, seja em termos do percentual da força de trabalho. No Brasil, menos do que 10% dos trabalhadores são empregados pelo setor público. Itália, Argentina, Uruguai e EUA empregam uma vez e meia esse valor. Vários países europeus, em especial aqueles nos quais o bem-estar social é mais marcante, têm 20% a 30% de seus trabalhadores no setor público. Ver, por exemplo, http://blogolitica.blogspot.com.br/2012/09/com-os-recursos-disponiveis-na.html
[v]              Ver o artigo “O fim da USP” em http://www.adusp.org.br/index.php/democracia-usp/2807-o-fim-da-usp
[vi]             No estado onde a educação superior é a mais privatizada do país, seja em termo de matrículas de graduação em relação à população, seja em vagas disponíveis por concluinte do ensino médio, seja na divisão entre matrículas no setor público versus privado, dispensar funcionários é um absurdo. Se houvesse (não há) excesso de funcionários em algum setor, um remanejamento que permitisse o aumento do número de estudantes seria muito melhor.
[vii]            Ver, por exemplo, a tabela 1 do documento “USP: crise financeira’ ou crise de financiamento?” em http://www.adusp.org.br/files/cadernos/financUSP.pdf



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