Publicado originalmente em Caros Amigos n. 231, junho/2016
A
legislação que regulamenta o financiamento político no Brasil, de 1997 (1), permitia,
até setembro de 2015, que empresas fizessem doações para candidatos e partidos que
poderiam chegar a 2% de seu faturamento anual. Eram vários os absurdos de tal
norma. Primeiro, e antes de tudo, uma empresa não é
um ente que possa ter poder político e jamais poderia ter influência eleitoral.
Um segundo
absurdo é que quem faz a doação é a empresa e, portanto, os custos vão para o
preço de seus produtos ou serviços, juntamente com as demais despesas, como
salários, impostos, aluguéis, insumos e tudo o mais. Portanto, segundo aquela
lei, quem de fato deveria arcar com todas as despesas das campanhas políticas seriam
os consumidores, clientes, usuários, hóspedes, pacientes, passageiros etc., ou,
caso a empresa em questão recebesse de órgãos públicos, os contribuintes. Ou
seja, nós pagamos as despesas eleitorais de muitos candidatos e sustentamos
muitos partidos políticos sem sequer saber quais!
Um terceiro
absurdo: aqueles 2% do faturamento anual das empresas correspondem a valores
altíssimos, na casa das dezenas bilhões de reais. Isso levou, de um lado, a um
encarecimento enorme das campanhas eleitorais e, de outro lado, transformou-as
em uma disputa quase apenas publicitária: quanto mais eficientes os
marqueteiros, maiores as chances de vitória de um candidato. A combinação
desses fatores inviabilizou, com raras exceções, a eleição de quem não
dispusesse dos necessários recursos para a campanha e reduziu a capacidade de
se conquistar eleitores com base em militância e disputa de projetos e
propostas políticas. Com aquele limite de 2% do faturamento, as empresas podem
eleger quantos legisladores quiserem: se não elegem mais, não é porque não
podem, mas porque não precisam.
Um
quarto absurdo daquela lei de 1997 é o fato que empresas fazem investimentos e negócios
e, obviamente, ao financiarem candidatos e campanhas eleitorais, esperam algum
retorno. Assim, transformam a política em uma espécie de balcão de negócios.
No liberalismo brasileiro, até política é
mercadoria
A aprovação
de uma lei que permite que empresas financiem partidos e candidatos naquele ano
de 1997 não é surpreendente, uma vez que o país vivia o auge do liberalismo
extremado e radical, onde tudo era transformado em mercadoria: educação, saúde,
recursos minerais estratégicos, infraestrutura, serviços urbanos básicos etc.,
e até mesmo a política: votos, partidos e candidatos deveriam ser regidos pelas
leis de mercado. Se alguém ou algum partido não consegue “vender” seus
programas, é porque eles não são bons! O mercado deve decidir.
Portanto,
não é também surpreendente termos os parlamentares e as estruturas partidárias
(com as raras, nobres, mas absolutamente insuficientes, exceções) que temos.
Surpreendente seria o contrário: parlamentares preparados e comprometidos com a
educação e a saúde públicas, com o desenvolvimento social do país, com as
superações das desigualdades, com a justiça social, com a qualidade dos meios
de comunicação e com sua democratização, com a cultura nacional, com os
serviços públicos, com um crescimento econômico compatível com as necessidades
da grande maioria da população, com o respeito às diversidades, com o respeito
ao meio ambiente, com a defesa do patrimônio nacional etc.
A alteração da lei eleitoral pode não
ser suficiente
Em
2011, a OAB entrou com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade junto ao STF
(2), questionando, entre outras coisas, o financiamento por empresas. Mas, dada
a lentidão do processo e o retardo adicional de quase dois anos provocado por
um pedido de vistas feito pelo ministro Gilmar Mendes, a votação no STF foi
concluída quase quatro anos e duas eleições depois do início do processo. Finalmente,
aquele tribunal entendeu que financiamentos por empresas são inconstitucionais,
obrigando a legislação a ser alterada, o que ocorreu em setembro de 2015.
Mas,
infelizmente, a alteração da lei foi apenas parcial e algumas importantes questões
apresentadas no pedido inicial não foram acatadas. Assim, embora esteja
proibido o financiamento eleitoral por empresas – com o voto contrário de três ministros,
inclusive daquele que pedira vistas ao processo – muitas brechas sobraram.
O
financiamento por pessoa física continuou inalterado: estas continuam podendo doar
até 10% da renda anual para campanhas eleitorais. Como esse limite é definido a
partir da renda do doador, o poder político é tão maior quanto maior for o
poder econômico de uma pessoa. Isso parece repetir a Constituição de 1824,
quando a condição para ser eleitor ou candidato era dependente da renda da pessoa
(3), e é totalmente incompatível com o que se concebe minimamente como
democracia.
Essa
dependência da doação com a renda do doador, além de não democrática, é um
caminho fácil
para a burla da proibição do financiamento por empresas, pois suas altas direções
e proprietários podem aumentar suas próprias rendas (já que sobre distribuição
de lucros não incide IR) para transferir o que for necessário aos seus
candidatos e partidos preferidos. Outra possibilidade é
usar “laranjas”, prática bastante usual no Brasil em todos os setores da vida
econômica. Essas e outras muitas possibilidades e artimanhas fazem com que despesas
eleitorais continuem entrando nas planilhas de custo das empresas e, portanto, sendo
pagas por nós, continuam mantendo os altos custos das campanhas eleitorais e,
portanto, dificultando ou mesmo inviabilizando a chance de candidatos e
partidos que não tenham acesso a pessoas de altas rendas. (Vale lembrar, ainda,
que os candidatos podem usar recursos próprios. Portanto, quanto mais rico e
mais bem relacionado, maior a chance
de sucesso em uma carreira dita política.)
Assim, as disputas eleitorais continuarão a ocorrer no rinque publicitário,
reduzindo a quase nada a disputa por projetos políticos.
Alguém
poderia encontrar um aspecto positivo na legislação, pois os gastos totais
devem ficar dentro de certos limites definidos por lei e calculados pelo TSE.
Caso esses limites fossem sensatos, o poder econômico dos candidatos e das
empresas e dos amigos que os apoiam (ou com quem negociam) poderiam não
comprometer a democracia. Mas quando consultamos aqueles limites, percebemos
que, na prática, podem nada significar. Por exemplo, para uma campanha de
vereador em São Paulo, o limite será, neste ano de 2016, da ordem de 2,5
milhões de reais (4). Para prefeito, o limite estará perto dos 50 milhões de
reais, incluindo os dois turnos. Ora, a quem beneficia tais limites? O fundo
partidário de cada um dos quatro ou cinco partidos que mais recursos recebem,
ainda que nada fosse usado para manutenção de suas sedes, fundações e demais
organismos, nem para suas campanhas não eleitorais, coisas, inclusive, exigidas
por lei, seria insuficiente para bancar a eleição em uma única grande capital
do país.
Uma
comparação internacional pode ajudar a perceber quão absurdos são aqueles
valores limites. Caso o Brasil aplicasse regras parecidas com as de países
eleitoralmente democráticos (5), os limites por doador seriam da ordem de
alguns poucos pontos percentuais da renda per capita nacional para cada
candidato a um cargo municipal (o que não excederia, talvez, mil reais no
Brasil) e o total das doações que uma pessoa poderia fazer não excederia 10% da
mesma renda per capita (o que corresponde a alguns poucos mil reais a valores
de 2016), bem diferente de 10% da renda anual do doador. Limites que tomam por
base a renda per capita, em especial nos países com boas distribuições de
renda, praticamente igualam as possibilidades de todos os candidatos.
Há
países que estabelecem limites para os gastos totais por campanha, tanto para
cada candidato como para cada partido. No caso de eleições locais, os limites
de gastos por candidato são tipicamente da ordem de uma vez ou poucas vezes a
renda per capita nacional, o que corresponderia a valores na casa das dezenas
de milhares de reais no nosso caso, bem diferente dos milhões de reais da nossa
legislação no caso da eleição paulistana de 2016. O gasto total máximo por
partido em uma eleição com muitos cargos em disputa, por sua vez, está
tipicamente na casa de centenas de vezes a renda per capita do país, ou seja,
alguns milhões de reais ou talvez uma dezena deles no caso brasileiro. (No caso
brasileiro, como não existe limite de gastos por partidos, podemos estimá-lo a
partir dos limites
de gastos por candidato: o valor, no caso da eleição paulistana, poderá ser
superior a algumas centenas de milhões de reais.)
Apenas para
ilustrar com um exemplo concreto de um país bem conhecido, a França, nas
eleições senatorias de 2014, o limite dos gastos por candidato foi de 10.000 €
mais 0,02 € ou 0,05 € (nos casos de três ou dois senadores, respectivamente)
por habitante. Por exemplo, em um departamento com um milhão de habitantes e
dois senadores a serem eleitos, os gastos máximos seriam de 60 mil euros, valor
não muito diferente da renda per capita daquele país. Se usarmos a renda per
capita como parâmetro, aquele limite corresponderia, no Brasil, a um valor não
muito diferente de 30 ou 40 mil reais. Ainda que usássemos o câmbio como
referência, o que seria totalmente inadequado, pois desconsideraria a realidade
econômica do país, o valor seria da ordem de 250 mil reais.
Há riscos de
retrocesso
Depois
da derrubada do governo Dilma (golpe que atinge também todos os partidos à
esquerda do espectro político, todos os movimentos sociais organizados, independentemente
de terem ou não apoiado o governo ou participado de campanhas contra o impeachment),
alguns grupos e partidos estão clamando por eleições gerais. Essa demanda parece
correta, mas é insuficiente e arriscada. Para que esse clamor possa ter alguma
consequência prática na luta pela democracia brasileira – que algum dia ainda
teremos –, ele precisaria ser complementado com (e antecedido por) uma campanha
de denúncia dos atuais mecanismos privados de financiamento eleitoral e de partidos
políticos.
Uma
campanha nessa direção precisaria cumprir algumas condições. Uma delas é a
defesa enérgica da manutenção da proibição de financiamento eleitoral e
partidário por empresas, o que, por sinal, corre risco. Em maio de 2015, com o apoio
vice-presidente da República e do presidente da Câmara dos Deputados na época,
uma emenda constitucional que a legalizaria foi apreciada pela Câmara, mas, felizmente,
não conseguiu os 60% dos votos necessários. Além disso, há grupos,
parlamentares e partidos que defendem aquela forma de financiamento (além dos
três ministros do STF que votaram contra a sua proibição), como aquele formado
por uma comissão da Câmara com representantes de 15 partidos que apresentou, em
2013, uma proposta de emenda à Constituição que legalizava o financiamento por
empresas. Com a retomada do poder pelos grupos ultraliberais e cujas campanhas (e,
aparentemente, contas bancárias pessoais, em muitos casos) foram irrigadas, e
bem irrigadas, por recursos de empresas, corremos riscos.
Além
de lutar para manter a proibição de financiamento eleitoral por empresas, é
necessário lutar pela criminalização e penalização tanto do doador como do
partido ou candidato, incluindo-se entre as penas a perda do mandato e a
inelegibilidade, o que a legislação atual não faz.
Estratégia errada?
Talvez tenha sido um erro os partidos mais à esquerda
defenderem o financiamento exclusivamente público de campanhas, pois foi muito
fácil desqualificar tal proposta junto à enorme maioria da população com o
discurso “ainda querem que a gente pague mais essa conta com nossos impostos”,
sem nem precisar adicionar a frase “para eleger esses corruptos”. O mote
deveria ser proibir o financiamento
privado por empresas, pois somos nós que pagamos a conta, sem sequer saber quem
são os candidatos que ajudamos a eleger, e limitar o financiamento por pessoas
físicas ou com recursos próprios a um valor compatível com a realidade
brasileira e não com a renda do doador ou do candidato, como é feito em
qualquer lugar que possa ser considerado eleitoralmente democrático.
A se confirmar nas próximas eleições municipais, o atual
sistema de financiamento reproduzirá as mesmíssimas características dos membros
dos poderes executivos e legislativos. E, pior, caso sejam chamadas eleições
gerais, com o apoio de partidos e grupos populares e à esquerda do espectro políticos,
que clamam por elas, a maiorias dos eleitos terão uma legitimidade que não
merecem. A tarefa que precede qualquer outra em relação às questões eleitorais
é a luta para democratizar o sistema de financiamento, acabando com (e
criminalizando) o financiamento por empresas e limitando o financiamento por
pessoas físicas e os gastos por candidato e por partido a valores compatíveis
com a renda per capita do país. Não fazer isso é condição suficiente para não
termos um sistema democrático.
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Observação: a versão publicada, por questões de estilo editorial da revista, não contém as referências.
(1) Lei
federal 9.504 de 1997, acessível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9504.htm
(2) A íntegra da Ação Direta de Inconstitucionalidade, ADI
4650, pode ser consultada em http://www.stf.jus.br/portal/geral/verPdfPaginado.asp?id=1432694&tipo=TP&descricao=ADI%2F4650
(3) A Constituição de 1824 exigia uma renda líquida anual de pelo
menos oitocentos mil réis para alguém poder ser
senador e 400 mil réis para deputado. Para ser eleitor de senador, deputado ou
membros de conselhos provinciais a renda mínima exigida era de duzentos mil
réis. Pessoas com renda inferior a 100 mil réis não podiam sequer votar nas
Assembleias Paroquiais. Para se ter alguma ideia do que podem significar tais
valores, eles são da mesma ordem de grandeza da renda anual, na época, de um mestre de capela, cargo bastante
respeitado, ou do valor de um quilograma de ouro.
(4) Resolução TSE 23.459 http://chimera.tse.jus.br/legislacao-tse/res/2015/RES234592015.html. O
valor provisório é de 2,4 milhões, devendo ser atualizado monetariamente em
julho deste ano.
(5) O International
Institute for Democracy and Electoral Assistance, em seu sítio http://www.idea.int/ (em
particular, no endereço http://www.idea.int/political-finance/question.cfm?field=286)
tem detalhes quanto aos limites para doações e gastos por candidato e por
partido aplicados em praticamente todos os países.
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