O ensino público superior em São Paulo, manifestação feita na Assembléia Legislativa paulista em 27/junho/2012
O Brasil está estre os três ou quatro países onde o ensino superior está mais privatizado, seja essa privatização medida em número de matrículas, de cursos ou de instituições. O Estado de São Paulo, em especial, apresenta taxas de privatização ainda maiores do que as dos demais estados. Na média nacional, apenas cerca de 25% das matrículas são em instituições públicas, uma média entre os 13% em São Paulo e 31% nos demais estados. Nenhum país apresenta taxas de privatização tão altas como o que vemos no Estado de São Paulo.As consequências dessa privatização são múltiplas e graves. De um lado, há as cobranças de mensalidades, uma barreira intransponível para grande parte dos estudantes ou de suas famílias.
Do lado acadêmico, há outros aspectos muito graves. Como a maioria das instituições privadas é de caráter mercantil, os cursos oferecidos e as regiões onde essas instituições se instalam nada têm a ver com as necessidades das diferentes áreas de conhecimento e regiões geográficas: os cursos oferecidos são os que apresentam um maior potencial de clientes, preferencialmente que tenham nomes atraentes ou que estejam “na moda” e se concentram nas regiões onde há pessoas com renda suficiente para viabilizar os empreendimentos. A comparação feita acima sobre as taxas de privatização do ensino superior em São Paulo e nos demais estados ilustra esse critério mercadológico de distribuição dos cursos e das instituições: a concentração da privatização é maior em São Paulo porque é esse o Estado onde há maior contingente de pessoas com recursos suficientes para pagar as mensalidades.
O fato que os cursos privados se distribuem segundo um critério mercadológico e não segundo as necessidades do país é ilustrado pela distribuição dos estudantes pelos diferentes cursos. Por exemplo, enquanto no Brasil menos do que 6% das conclusões de graduação são em cursos de engenharia, área estratégica para o aumento da produção, nos demais países essa porcentagem é da ordem de duas a três vezes maior, ocorrendo o inverso com cursos nas áreas de administração em geral. Essa distorção é provocada basicamente pelas instituições privadas, uma vez que as públicas federais e estaduais apresentam uma distribuição dos estudantes equivalente àquela observada nos países onde o ensino é tratado como uma mercadoria, mas como um direito e dentro de uma estratégia que respeita as necessidades do país e da sociedade. (Veja tabela 1.)
A privatização em São Paulo
Como já dito acima, a privatização no Estado de São Paulo é maior do que a média dos demais estados. Isso ocorre não apenas porque as instituições privadas preferem oferecer seus cursos onde a renda disponível da população é maior – onde encontram maior clientela –, mas, também, porque o setor público se mostra mais ausente em São Paulo do que nos demais estados, como mostrado na tabela 2.
Em primeiro lugar, o que mais diferencia o Estado de São Paulo dos demais estados é a pouca oferta de ensino público federal: enquanto em São Paulo há apenas uma vaga para mais do que 50 concluintes do ensino médio, nos demais estados essa relação é de 5,7. O mesmo ocorre quando usamos como termo de comparação as populações: em São Paulo, há mais do que cinco mil habitantes para cada vaga de ingresso em uma instituição federal, contra 620 nos demais estados.
Quanto às instituições estaduais, elas oferecem, tanto em São Paulo como nos demais estados, uma vaga para cada 13 concluintes do ensino médio. Quando a comparação é feita com a população total dos estados, a pequena diferença (1200 habitantes por vaga em São Paulo contra 1440 nos demais estados) não é significativa. Assim, vemos que a presença das instituições estaduais em São Paulo e nos demais estados, no que diz respeito à oferta de vagas de ingresso, são equivalentes, apesar de ser o Estado de São Paulo aquele que apresenta as melhores condições econômicas, tanto em termos absolutos como, especialmente, em termos per capita. Assim, não seria errado supor que a pequena oferta de ensino superior público em São Paulo não está relacionada a questões econômicas dos estados, mas, sim, seja uma estratégia para facilitar a exploração mercantil do ensino superior.
Quanto às instituições classificadas como municipais, embora haja diferenças entre o que ocorre em São Paulo e nos demais estados, duas observações são necessárias. Primeiro, esse tipo de instituição é, pelo vínculo administrativo que mantém, por suas características acadêmicas, por cobrarem mensalidades, pela forma que contratam seus professores, ou, ainda, pelo tipo de cursos que oferecem, equivalente às instituições privadas. Portanto, deveriam ser incluídas entre essas últimas, não entre as públicas. Mas como o número de vagas que oferecem é da ordem de 2% a 3% do total, incluí-las ou não, em nada alteraria as conclusões.
Evidentemente, há de se considerar os aspectos qualitativos das instituições estaduais paulistas, como a formação de mestres e doutores e a produção de conhecimento científico e tecnológico, que as colocam em posição de destaque em comparações internacionais. Entretanto, esses aspectos não parecem estar relacionados ao tipo de vínculo administrativo das instituições, mas, sim, aos demais aspectos da realidade econômica e demográfica das regiões onde elas estão e de suas histórias. Instituições federais mais antigas, instaladas em grandes centros urbanos e em regiões onde as características econômicas se aproximam das paulistas, têm características acadêmicas que também se aproximam das paulistas. Portanto, essa posição de destaque das universidades estaduais paulistas, fruto do esforço daqueles que nelas trabalham e trabalharam e consequência do meio onde estão instaladas, não pode ser atribuída a uma política pública do governo estadual.
Avaliações de universidades
Como a análise feita neste texto aponta aspectos bastante problemáticos do ensino superior público estadual em São Paulo, ela poderá parecer estar em desacordo com avaliações comparativas internacionais de universidades. Assim, é necessário entender essas avaliações para que elas sejam analisadas de forma adequada e dentro do contexto em que são feitas.
Um primeiro ponto é quanto ao fato dessas avaliações aparecerem sob a forma de ordenamentos (ranqueamentos, como se habituou dizer). Esse tipo de análise faz com que, ainda que todas as universidades avaliadas sejam ruins ou boas, dentro do critério usado, um ordenamento sempre terá as primeiras e as últimas colocadas. Além disso, esses ordenamentos são feitos com forte viés na produção científica e não na contribuição total que as universidades dão a seus países. Assim, se um país relativamente pobre, pequeno e com grandes problemas educacionais tiver universidades bem colocadas nos critérios usados nesses ordenamentos, isso poderá indicar um problema, não uma boa características do país ou da instituição. Portanto, um bom posicionamento nessas listas não significa, necessariamente, alguma coisa positiva.
Outro aspecto desses ordenamentos é que a posição de uma universidade pode ser alterada não porque ela melhorou (insistindo: melhorou dentro da métrica usada na avaliação, não necessariamente do ponto de vista daquilo que se espera dela), mas porque as demais pioraram. Exemplo disso é o fato que no ordenamento divulgado recentemente pela The Times Higher Education para o período 2010/2011, a Universidade de São Paulo, com seus 44,1 pontos, ficou na posição 178. Entretanto, essa mesma pontuação não a colocaria entre as 200 primeiras na avaliação do período 2009/2010. O fato é que entre essas duas avaliações, as universidades dos países com maiores rendas per capita tiveram reduções bastante significativas em suas pontuações, possivelmente por causa da crise financeira que os está afetando. Como que corroborando essa última afirmação, a universidade espanhola em melhor posição nos ordenamentos feitos pelo The Times Higher Education apresentou uma redução de 8 pontos entre 2009/2010 e 2010/2011, em uma escala que vai até 100, bem maior do que o observado nas demais instituições dos países mais industrializados, da ordem de 2 ou 4 pontos. Não por acaso a Espanha é um dos países europeus, entre aqueles que têm universidades bem posicionadas naquele ranking, que mais está sofrendo com a crise. (Por causa da situação financeira do país, as universidades espanholas impuseram seguidas perdas salariais a seus trabalhadores e reduzindo o corpo docente.)
Um terceiro aspecto diz respeito ao fato que ações positivas e necessárias, de alto retorno social e econômico, podem piorar a posição de uma universidade. Por exemplo, um dos critérios bastante usados nas várias avaliações é a razão entre a produção científica, medida pelo número de artigos científicos publicados e citações desses artigos, e o número de docentes da instituição. Vejamos o que pode acontecer se uma universidade pública brasileira aumentar seu corpo docente contratando aqueles que hoje estão ligados a ela por meio de programas de pós-doutoramento e que muito contribuem para sua produção científica, mas não são contados em seu corpo docente. Essas contratações permitiriam ampliar o número de estudantes na mesma proporção do aumento dos docentes. Com isso, todos ganhariam, pois mais pessoas seriam atendidas pela universidade e esses novos docentes contratados passariam a ter melhores condições de vida e trabalho do que tinham na condição de bolsistas. Entretanto, essa universidade cairia no quesito “produção científica por docente”, pois esses novos contratados, mantendo sua produção científica inalterada, provocaram uma redução da relação entre a produção científica e o quadro de professores. Em suma, uma ação positiva pode levar a um rebaixamento da universidade em uma lista ordenada pela produção científica.
Outro exemplo na mesma linha mostra como uma ação negativa pode “melhorar” a posição de uma universidade em um ordenamento. Como a produção científica é mais intensa nas áreas básicas do que nas chamadas profissionalizantes, se em uma universidade essas últimas áreas fossem reduzidas, ela subiria na comparação que privilegia a produção científica. Mas o balanço final para o país, para o estado e para a própria universidade seria altamente negativo.
Um quarto aspecto é quanto a finalidade de uma instituição de ensino superior. Vamos ver isso em um exemplo. No estado da Califórnia, EUA, há dois grandes sistemas universitários, a California State University, com 400 mil estudantes e cerca de 50 mil docentes, e a University of California, com pouco mais de 200 mil estudantes e 19 mil docentes, ambos subdivididos em unidades independentes. As unidades do sistema University of California estão entre as mais bem colocadas nos ordenamentos comparativos, o que não ocorre com as unidades do outro sistema. A razão para isso é o fato que a California State University tem como finalidade principal a formação de quadros profissionais para o estado e não a produção científica e tecnológica. Assim, a finalidade de uma instituição pode definir sua posição em um ranqueamento, mostrando que esse tipo de classificação não é de uso universal, mas apenas um simples indicador cujo resultado deve ser entendido dentro do contexto adequado. Se o sistema da California State University vier a ser mais pautado para a produção científica, em detrimento da formação de quadros profissionais, suas unidades aparecerão em boas posições nos ordenamentos internacionais baseados na produção científica, mas provavelmente será negativo para aquele estado e para sua população.
Embora nem sempre definidos explicitamente na legislação ou nos estatutos das diferentes instituições públicas brasileiras, como ocorre no estado da Califórnia, nossas instituições públicas cumprem diferentes tarefas nas diferentes regiões do país. Inclusive, essas tarefas podem, como têm ocorrido, variar ao longo do tempo. Portanto, um resultado mais ou menos destacado nos ordenamentos feitos não significa, necessariamente, nem melhor, nem pior.
Em resumo, as avaliações internacionais mais divulgadas são pautadas basicamente pela produção científica e não por outras contribuições que as universidades dão aos países e sociedades das quais fazem parte. Portanto, é dentro desse contexto que os resultados dessas avaliações devem ser analisados.
As instituições públicas estaduais de ensino superior em São Paulo
No que segue, vamos analisar alguns aspectos das três universidades públicas estaduais paulistas, USP, Unesp e Unicamp, e do Centro Estadual de Educação Tecnológica Paula Souza, onde estão localizadas as Fatecs, instituições responsáveis por cursos superiores.
Os orçamentos totais dessas quatro instituições equivalem a pouco mais do que 0,5% do PIB paulista (valor médio para a última década). Entretanto, grande parte desse orçamento corresponde a pagamentos de aposentadorias, despesas que jamais poderiam ser contabilizadas como investimentos em educação. Se essas despesas previdenciárias forem descontadas dos orçamentos e ainda considerarmos que grande parte dos orçamentos das universidades corresponde a cursos de pós-graduação e à pesquisa científica e tecnológica, podemos estimar o investimento público em ensino de graduação como próximo ou mesmo abaixo de 0,25% do PIB estadual. Esse percentual já é suficiente para mostrar o quão pequeno é o esforço estadual com o ensino superior em nível de graduação. Ainda que àqueles orçamentos adicionarmos os orçamentos das outras instituições estaduais e federais em São Paulo, dificilmente chegaríamos a 0,3% do PIB paulista destinado à educação pública em nível de graduação.
Esse pequeno valor tem múltiplas consequências. Por exemplo, ele abre as portas para as instituições privadas, que se beneficiam da ausência do setor público. Além disso, comprometemos a formação de quadros, tanto para a produção de bens e serviços como para o desenvolvimento social do Estado.
Os investimentos em ensino de graduação devem ser medidos em valores certamente superiores à 1% do PIB, em especial em países ou regiões mais industrializadas, até mesmo para manter esta última condição. Esse valor corresponde a cerca de quatro vezes o que se aplica, hoje, em São Paulo. Assim, cabe perguntar se o fato da crise econômica que se instalou após o final do período ditatorial ter sido, no Estado de São Paulo, duas vezes mais intensa no que diz respeito à redução da renda per capita e três vezes mais longa do que nos demais estados, como mostra a figura 1, foi devido à colocação em segundo plano do ensino superior de qualidade referenciada na sociedade.
Andando muito para trás, pouco para frente
Depois de um longo tempo de estagnação ou de pequenos aumentos aquém do aumento populacional, o número de vagas em cursos de graduação nas universidades estaduais paulistas cresceu, nas últimas duas décadas entre pouco mais de 50%, no caso da USP, e cerca de um fator dois no caso da Unesp e da Unicamp. Apesar de esse aumento parecer expressivo, quando consideramos que a população cresceu quase 50% no mesmo período, vemos que o crescimento em relação à população é bem menos expressivo: da ordem de 15% no caso da USP e cerca de 50% no caso da Unicamp e Unesp.
E esse crescimento está ainda bem aquém do aumento da participação de jovens no ensino superior nos outros países intermediários como o Brasil, que foi da ordem de um fator dois em um período de duas décadas. Portanto, embora o aumento das vagas de graduação nas universidades estaduais tenha sido maior do que o aumento da população, ele está bem abaixo do que seria esperado se apenas acompanhássemos a tendência mundial em países e regiões equivalentes ao Brasil ou ao Estado de São Paulo.
Esse aumento no número de vagas, e, portanto, de estudantes de graduação, além de ser menor do que se esperaria se apenas mantivéssemos uma posição relativa aos vários países inalterada, deveu-se, basicamente, a um maior esforço por parte dos trabalhadores nas universidades. Naquele mesmo período, o número de docentes nas universidades estaduais apresentou flutuações e, em duas décadas, aumentou bem menos do que o aumento da população. No Centro Paula Souza, o número de trabalhadores aumentou bem menos do que o número de estudantes atendidos, fazendo crescer muito proporção alunos de graduação por trabalhador.
Além desse aumento, devemos considerar o aumento no número de estudantes de pós-graduação, muito expressivo no período, bem como o aumento de títulos de pós-graduação, por um fator três, muito superior à variação do número de docentes.
O resultado combinado desses vários fatos é uma carga de trabalho e uma produtividade por docente ou funcionário técnico-administrativo muito grande. Embora seja difícil combinar os aumentos dos indicadores de graduação, pós-graduação e produção científica, a produtividade por docente e por funcionário técnico administrativo aumentou muito nas últimas duas décadas.
Esse enorme aumento da produtividade por trabalhador não teve uma contrapartida na forma salarial, como ilustra o gráfico 2, típico para as condições de trabalho nas universidades estaduais. Situação até mais grave ocorreu no Centro Paula Souza, cujo aumento de matrículas em um período de pouco mais de dez anos foi de um fator três, enquanto o número de trabalhadores aumentou por um fator pouco acima de dois. Apesar desse aumento da relação entre estudantes e trabalhadores, os salários dos trabalhadores do CEETEPS não têm acompanhado, sequer, os reajustes da universidade.
Quando os salários são comparados com a renda per capita do estado, a perda em um período de pouco mais do que duas décadas é ainda mais impressionante do que aquele indicado na figura 2. Em resumo, seria necessário um aumento salarial de cerca de 25% apenas para repor o poder aquisitivo do final da década de 1980. Entretanto, ao longo de trinta anos, a renda per capita per capita aumentou, embora pouco, cerca de 20%. Portanto, várias coisas que não existiam há três décadas atrás ou cujo uso era muito limitado, passaram a ser incorporadas na vida das pessoas e apenas manter o poder aquisitivo corresponderia a excluir as pessoas do acesso a elas. Assim, além dos cerca de 25%, seria necessário um reajuste adicional da mesma ordem apenas para preservar a posição relativa que os trabalhadores das instituições estaduais de ensino superior tinham há três décadas. Mais ainda: considerando o enorme aumento da produtividade das instituições paulistas de ensino superior –por exemplo, na forma de mais estudantes, inclusive de pós-graduação, mais teses e dissertações concluídas, mais artigos científicos e livros por docente – haveria espaço para um reajuste ainda maior do que aquele que resultaria da preservação do pode aquisitivo e da manutenção na participação na produção de bens e serviços pela sociedade.
Resumo e conclusão
O ensino superior no Estado de São Paulo apresenta um grau de privatização totalmente inaceitável. Se ainda considerarmos que essa privatização ocorre fortemente por meio de instituições mercantis, cujas preocupação social, acadêmica e com a formação da força de trabalho que necessitamos, encontramos uma situação totalmente inaceitável e que, possivelmente, muito contribuiu para a crise de social e de produção econômica paulista.
Além desse aspecto, a evolução do ensino superior público em São Paulo tem estado significativamente abaixo do aumento do ensino superior em diversos países cujas realidades econômicas se assemelham às nossas. E esse aumento tem sido basicamente conseguido por meio de uma maior carga de trabalho dos trabalhadores das instituições estaduais. Ao contrário do que se poderia esperar, isso tem sido acompanhado de uma redução do poder aquisitivo dos salários.
Certamente esses fatos terão consequências no futuro da mesma forma que as ações do passado têm consequências hoje. Se tivéssemos tido um ensino público de qualidade, a realidade econômica e social do Estado de São Paulo seria, hoje, bem menos grave. E, apesar de nossa crise econômica ter sido bem mais intensa e duradoura que no restante do país, como mostrado na figura 1, temos condições de recuperar nosso sistema educacional, inclusive nos níveis técnico, tecnológico e superior.
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