Publicado originalmente no Correio da Cidadania, 22/maio/2012
Em qualquer direção que se olhe o cenário da educação no Brasil, há
algum projeto “salvador” que serve como uma espécie de barreira a
dificultar uma análise objetiva da realidade. Como em uma batalha, esses
inúmeros projetos funcionam como proteção dos muitos flancos frágeis de
nossa política educacional. Qualquer análise crítica pode ser
“respondida” apontando-se para algum desses projetos e afirmando-se que
ele permitirá superar o problema analisado, bastando esperar. E sempre
que um projeto se mostra inoperante, outro surge para ocupar seu lugar.
Um
desses projetos, o Ensino a Distância (EaD) em nível superior, é
apresentado como uma solução, em especial para a falta de professores no
país. Entretanto, como veremos, é, de fato, um enorme problema.
O
EaD cresceu de forma muito expressiva ao longo da década de 2000,
passando de pouco mais do que seis mil vagas para 1,7 milhão de vagas em
2010, número praticamente igual ao de concluintes do ensino médio, que
foi da ordem de 1,8 milhão em 2010 [1]. Não há nenhum sentido nisso,
ainda mais se considerarmos que o número de vagas em cursos presenciais é
muito superior ao número de formados no ensino médio. Quem ganha com
isso é certamente o setor privado, que detém mais do que 97 % das vagas
em EaD, conquistando, assim, um enorme poder de barganha e de pressão
sobre ações que eventuais órgãos de controle do sistema educacional
possam vir a ter no futuro para corrigir a distorção criada.
Quem oferece EaD e para que áreas?
Nos
processos de estudo, ensino e aprendizado, não devemos abrir mão de
nenhuma possibilidade: aulas expositivas, laboratórios, estudos
individuais ou em grupo, apostilas, listas de exercício, visitas a
museus, consultas a bibliotecas etc. Os instrumentos de ensino a
distância, sejam na forma de emails, telefonemas, sites, vídeos, sons,
ambientes virtuais, blogs etc., também podem e devem ser usados.
Portanto, não há nada contra o ensino a distância como um instrumento a
mais que possa favorecer o processo de aprendizado.
No entanto,
isso que foi dito acima nada tem a ver com a forma que o EaD se instalou
no Brasil: entre nós, o EaD não é algo a mais para se oferecer aos
educadores e educandos, mas algo que pretende substituir o ensino
presencial, em especial no que diz respeito à formação de professores.
De
fato, a maior parte das vagas oferecidas no EaD é na área de Educação
(36% delas), que inclui a formação de professores nas diversas
modalidades. A área de Gerenciamento e Administração ocupa o segundo
lugar, com 31% das vagas, apesar de uma das distorções do sistema de
ensino superior brasileiro ser exatamente o fato que a proporção de
estudantes e formados nessas áreas é excessivamente alta quando
comparada com o que ocorre nos demais países. Ciências Sociais,
Computação, Serviço Social e Contabilidade têm, cada uma, cerca de 5%
das vagas.
Áreas com maior prestígio social e maior controle por
parte de conselhos de classe e de outros órgãos ou ministérios além do
MEC (como ocorre com cursos na área de saúde) têm uma participação nas
vagas bem menor ou mesmo nula. Assim, a área de Engenharia, apesar da
importância da profissão para o desenvolvimento do setor produtivo, a
reconhecida carência desses profissionais e a grande procura por parte
dos estudantes, tem menos do que 1% das vagas oferecidas em EaD.
Enfermagem também tem menos do que 1% das vagas e Odontologia e
Medicina, nenhuma.
Evidentemente, poder-se-ia argumentar que é
natural que Medicina e Odontologia são incompatíveis com o EaD por
exigir uma experiência prática com pessoas; mas o mesmo argumento não
valeria para Enfermagem? E para professores, cuja totalidade da vida
profissional será em contato direto com pessoas (os estudantes), o
argumento não seria ainda mais forte? E para professores nas áreas de
Biologia, Física e Química, como formá-los sem um intenso contato com
práticas experimentais e de laboratório?
Não restam dúvidas que as
proporções das vagas oferecidas em EaD não estão relacionadas às
necessidades nacionais de profissionais, mas, sim, são em número tão
maior quanto mais frágil e menos controlada é a profissão e mais
“vendável” for o curso.
A quem se destina o EaD no Brasil, hoje
As
argumentações em defesa do EaD no Brasil são baseadas em uma série de
erros de avaliação ou de desconhecimento do porquê a realidade é como é.
Uma constante nas justificativas do EaD é a necessidade de professores
no país, em especial de professores para o ensino médio e as séries
finais do ensino fundamental. A premissa é correta: realmente, faltam
professores em salas de aula, em especial nas escolas públicas, e os que
atuam são sobrecarregados. Mas qual a causa disso? É realmente a falta
de professores formados ou a impossibilidade de formá-los em cursos
presenciais?
A resposta a essa última pergunta é não. Não é
verdade que não existam professores em quantidade suficiente para
atender à demanda: eles e elas existem, mas cerca de um milhão de
pessoas com cursos de licenciatura estão fora das salas de aula. Esse
número de professores que não se dedicam ao ensino corresponde a cerca
de 70% das pessoas que concluíram cursos de licenciatura nos últimos 25
anos e que, portanto, estão na idade profissionalmente ativa. E a
explicação para esse fato é fornecida pelas condições de trabalho, pelo
baixo prestígio da profissão, pelo desrespeito profissional que sofrem
até mesmo por parte das pessoas responsáveis pela execução das políticas
educacionais do país e pelas condições salariais.
Há apenas duas
únicas áreas em que o número de professores é inferior à demanda: Física
e Química. Mas mesmo nessas duas áreas, há um enorme número de
professores formados fora das salas de aula. Grande parte deles poderia
ser incorporada ao quadro de professores ativos caso houvesse melhores
condições de trabalho. Se na média de todas as áreas cerca de 70% dos
licenciados formados não dão aulas, em Física esse percentual chega a
75% e em Química, a 80%.
A falta de professores não é, portanto,
devido a uma real inexistência de pessoas formadas e nem mesmo falta de
vagas em cursos de licenciatura presenciais ou de jovens interessados
pela profissão. Mesmo nas duas áreas citadas acima, Química e Física,
além de haver um grande número de formados fora das salas, há uma
possibilidade de formação de um número significativamente maior em
cursos presenciais. A procura de jovens por cursos superiores que levem à
formação de professores nas áreas de Física e Química é maior do que a
média de todas as profissões: como mostra a tabela, mais de 60% das
vagas oferecidas nos cursos de formação de professores de Física e
Química são ocupadas, porcentagem significativamente superior à média em
todas as áreas, da ordem de 51%. O problema surge posteriormente, no
abandono durante o curso: enquanto a relação entre concluintes e
ingressantes é 52% em rodas as áreas, em Física e Química as relações
são de 26% e 38%, respectivamente. Conclusão: há jovens interessados;
entretanto, e possivelmente alertados pelas condições salariais e de
trabalho que encontrarão pela frente, grande parte deles abandona seus
sonhos. E, finalmente, como já dito, cerca de 75% a 80% dos formados
estão fora das salas de aula.
Portanto, se conseguíssemos
preservar boa parte desses candidatos a professores de Química e Física,
em poucos anos superaríamos a deficiência de professores nessas áreas,
um tempo certamente inferior ao tempo já decorrido desde que
experiências com EaD, como a Universidade Aberta do Brasil (federal) ou a
Univesp (no estado de São Paulo), começaram a ser implantadas. O
problema de formação de professores, portanto, é bem diferente daquele
que os defensores do EaD dizem que esse sistema solucionará.
Talvez
o EaD seja um bom exemplo de uma coisa que acontece frequentemente no
Brasil: quando um problema é localizado, ao invés de se tratar de
resolvê-lo ou, pelo menos, reduzi-lo, tenta-se tirar proveito dele.
Assim, há um enorme interesse por parte das instituições de ensino
privado no sentido de explorar as possibilidades mercantis do EaD. E,
para isso, nada melhor do que disfarçar esse interesse na forma de uma
preocupação social, a formação de professores.
Mais justificativas falsas em defesa do EaD
Embora seja o setor privado o grande beneficiário do EaD, o setor
público tem colaborado, e muito, para defendê-lo e, ao oferecer, ele
mesmo, cursos a distância, acaba por legitimar esse tipo de ensino.
Vejamos alguns argumentos usados pelo setor público para defender o EaD.
Nos discursos e documentos, além dos argumentos relacionados à falta de
professores, aparecem argumentos econômicos. Um deles, usado pelo
governo estadual paulista e publicado na página eletrônica da então
existente Secretaria de Ensino Superior, afirmava que o estado de São
Paulo “investe 10% de sua receita líquida na educação superior”,
argumento que soa forte para justificar o EaD, em especial junto a uma
população que tem pouca familiaridade com os temas relacionados aos
detalhes dos orçamentos públicos e dos orçamentos das universidades.
Levando em conta esses detalhes, verifica-se que os investimentos em
ensino de graduação são inferiores à terça parte daquele valor! Ou seja,
aquela é uma informação simplesmente falsa.
Outro argumento
também repetido pelo setor público na defesa do EaD baseia-se na
hipótese que as pessoas não têm acesso à educação presencial, o que
torna necessário implantar o EaD. Ora, o EaD está sendo oferecido
basicamente à população urbana, não havendo, portanto, o problema da
distância. Se pessoas não têm acesso ao ensino presencial, não é por
dificuldade de deslocamento, falta de tempo ou qualquer outra razão
equivalente. A principal razão para explicar a “dificuldade de acesso” é
a simples inexistência de vagas nas universidades públicas: no Brasil
e, em especial, no estado de São Paulo, muitos dos estudantes
matriculados em cursos a distância residem em municípios ou mesmo em
bairros onde há instituições públicas de ensino superior presencial e de
qualidade, mas que não oferecem vagas em quantidade suficiente.
Se
há jovens interessados e preparados que querem frequentar cursos
superiores e não podem fazê-lo por razões econômicas, devem-se usar
instrumentos adequados de gratuidade ativa que os permitisse frequentar
cursos presenciais. O retorno social e econômico seria muito maior do
que oferecer EaD.
Alguns problemas do EaD [2]
O
EaD apresenta vários problemas de ordem acadêmica e social. Entre eles,
estão a quase inexistência da possibilidade de programas de iniciação
científica e a falta de perspectiva de prosseguir os estudos em nível de
pós-graduação. No EaD, muito provavelmente os estudantes também não
terão acesso fácil a boas bibliotecas nem ao necessário contato pessoal
com outros estudantes e professores da mesma área e, muito menos, com
estudantes e professores de áreas diferentes (ao frequentarem
disciplinas optativas ou encontrá-los nos espaços comuns, por exemplo),
coisas fundamentais e uma das características essenciais das
universidades.
No ambiente universitário presencial ocorre uma
série de atividades extremamente importantes para a formação geral, tais
como seminários, debates, cursos de extensão, diversas programações
culturais, além da possibilidade de se frequentar uma enorme gama de
disciplinas. Essas atividades, bem como as aulas práticas e de
laboratório, são inexistentes ou muito raras no EaD.
O ambiente
universitário oferece oportunidades importantes para estudantes
provenientes dos segmentos menos favorecidos (e que serão os principais
usuários do EaD), como, por exemplo, o acesso a práticas esportivas,
alimentação subsidiada, atendimento médico e odontológico, entre várias
outras. No EaD essas coisas ou não existem ou são de difícil acesso.
O
EaD pressupõe que o processo de ensino e aprendizado ocorra,
majoritariamente, em casa. Ora, o ambiente de moradia não é, em geral,
um bom ambiente de estudo, em especial para jovens das camadas menos
favorecidas, para os quais uma moradia isolada e silenciosa é algo
simplesmente inexistente. As aulas presenciais, nas quais os estudantes
ficam imersos em um — e apenas um — assunto, são fundamentais no
processo ensino e aprendizado.
Adotar o EaD como substituto do
ensino presencial poderá comprometer gravemente a qualidade da formação
dos profissionais de que o país precisa. Os diversos países que usam o
EaD, em proporções muito inferiores àqueles números citados
anteriormente, o fazem direcionando essa forma de ensino àqueles que
realmente não podem ter acesso ao ensino presencial, como prisioneiros,
pessoas impossibilitadas de locomoção, aqueles que trabalham em tempo
integral (estes últimos, sobretudo nos países e em cursos nos quais a
educação superior é exclusivamente, ou quase exclusivamente, em tempo
integral), militares engajados, entre outros. No Brasil, entretanto, tem
se adotado o EaD em substituição ao ensino presencial, o que poderá
comprometer gravemente a qualidade da formação inicial dos
profissionais, em especial se o profissional assim “formado” tiver que
atuar na “formação” de outros profissionais, como é o caso do professor.
Em
particular, formar professores por meio do EaD poderá comprometer duas
gerações, a dos próprios professores formados e a de seus alunos. Além
disso, contribuirá ainda mais para um rebaixamento dos critérios que a
sociedade tem para julgar o que é e o que não é educação superior e
ensino universitário.
Como transformar solução em problema
Atualmente,
o Brasil tem um número de doutores já superior a 100 mil e talvez perto
de 200 mil mestres que não completaram o doutoramento, perfazendo um
total de 300 mil pessoas preparadas para a docência em nível superior.
Esses profissionais têm plenas condições de contribuir com um ensino
superior presencial de qualidade e o fariam com competência, pois foi
para isso que se formaram. Entretanto, grande parte desse contingente é
subutilizada, em especial os que concluíram a pós-graduação mais
recentemente. Perder a oportunidade de associar o interesse e a
capacidade de trabalho dessas pessoas às necessidades e possibilidades
do país é um erro duplo: a um mesmo tempo, desperdiçamos os esforços
feitos para formar essas pessoas e ofereceremos um ensino superior, via
EaD, precário. Descartarmos a possibilidade de aproveitar os quadros já
formados em nosso ensino superior presencial e enveredarmos pelo caminho
do EaD, não parece muito inteligente.
Os países desenvolvidos que
adotam o EaD o fazem como algo adicional à educação presencial, não
como algo que a substitua. E as elites certamente não optam pelo ensino à
distância, nem para a formação de seus jovens nem para a escolha dos
profissionais que as assistem. E, também certamente, as profissões de
maior prestígio social jamais considerariam a hipótese de optar pelo
EaD.
Resolver velhos problemas é bem melhor do que criar novos
Atualmente,
quase a metade dos jovens é obrigada a abandonar a educação básica
antes da conclusão. Como menos da metade dos que a concluem o fazem no
período diurno, podemos estimar que não mais do que um em cada quatro
jovens termina a educação básica com as condições mínimas necessárias
para a continuidade de seu processo educativo. Se além desses fatores
considerarmos a precariedade das escolas públicas na maior parte dos
casos, onde está a enorme maioria dos jovens que terminam a educação
básica, concluímos que a fração de jovens que completa o ensino médio
com bases suficientemente sólidas para continuar seus estudos é muito
pequena. Dentro dessa dura realidade, o EaD nada resolverá. Ao
contrário, oferecer EaD a um contingente de jovens que, já nas atuais
circunstâncias, tem dificuldades em entender o que é um ensino
universitário, contribuirá para rebaixar ainda os critérios do que sejam
um sistema e um processo educacional de formação humana, técnica,
cultural, científica e social.
Oferecer uma aparente alternativa,
na verdade um desvio, levará a reduzir, ainda mais, o aproveitamento da
capacidade intelectual de nossos jovens e não resolverá o problema da
exclusão, apenas mudará a forma pela qual ela ocorre. Não é preciso ser
um especialista em Brasil para perceber que o EaD é destinado aos mais
pobres e cujos filhos terão professores formados, também, a distância.
Com
certeza, não é isso que queremos. Tendo deixado o EaD aparecer nessa
quantidade, descontroladamente e quase totalmente dominado pelo setor
privado mercantil, passamos a ter mais uma tarefa pela frente: lutar
para reverter essa situação.
E cabem algumas perguntas finais. Por
que os órgãos responsáveis permitiram que o EaD atingisse as enormes
proporções que atingiram? Por que governos legitimam o EaD da forma que
fazem?
[1] Fonte: Sinopses Estatísticas da Educação Básica e da Educação Superior, Inep, 2010
[2]
Muitos dos argumentos desta seção foram levantados pelo grupo de
trabalho de política educacional da Associação dos Docentes da
Universidade de São Paulo, Adusp - Seção Sindical, e divulgados em
publicações dessa entidade.
Nenhum comentário:
Postar um comentário