12 de jul. de 2011

Novo PNE não define qualidade da educação e tem viés privatista

Publicado originalmente na Revista Adusp n. 50, junho/2011, em coautoria com Lighia Horodinsky-Matsushigue
Faz falta no PNE proposto uma conceituação de qualidade da educação. O texto inteiro peca por confundir qualidade da educação com sua suposta aferição por avaliações e exames nacionais padronizados. E ao pretender, de modo correto, atacar o problema fundamental da qualidade por meio de ações de valorização do magistério da educação básica (Meta 17), nenhuma das estratégias propostas parece ter efetividade. Por outro lado, estratégias que favorecem a iniciativa privada perpassam quase todas as metas, da educação infantil (Meta 1) à pós-graduação (Meta 14)



Um Plano Nacional de Educação (PNE) é acima de tudo uma peça política e nessa condição precisa ser analisado. Sob esse aspecto, a proposta de PNE (Projeto de Lei 8.035/2010), enviada à Câmara dos Deputados pelo executivo federal, quase às vésperas do natal de 2010, peca, de saída, por apresentar um conjunto de metas (20), acompanhadas de estratégias (170, ao todo), sem que tanto estas quanto aquelas estejam explicitamente embasadas por um diagnóstico que as preceda. Ora, como avaliar a pertinência, ou não, de cada uma das metas sem a informação sobre a realidade da qual se parte? Como saber se a estratégia apresentada é correta, ou não, sem uma análise prévia daquilo que já foi aplicado à educação nacional, com sucesso ou não?

Nesse ponto, vale lembrar que o plano decenal anterior (2001-2010; Lei 10.172, de 9/1/2001) trazia um diagnóstico detalhado da educação em seus vários níveis e modalidades — em grande parte, copiado do PNE-Proposta da Sociedade Brasileira, encaminhado ao Congresso Nacional na forma de um projeto de lei, desenvolvido por entidades da sociedade civil congregadas no Fórum Nacional em Defesa da Escola Pública. Contudo, aconteceu ao PNE 2001-2010 o previsível: praticamente nenhuma de suas metas foi cumprida, pois não estipulava metas intermediárias; não previa atribuição de responsabilidades pelo não cumprimento dos compromissos legais; e, acima de tudo, foi despojado — pelo veto do então presidente Fernando Henrique Cardoso, mantido até hoje — de qualquer referência ao financiamento das metas. Muitas das quais, por sinal, extremamente semelhantes, se não iguais, às da atual proposta.

Sabendo-se que o atual ministro da Educação, Fernando Haddad, foi secretário e depois ministro da pasta durante metade do período de vigência do PNE anterior; e que o perfil político dos governadores e prefeitos não mudou, repetir as metas, que eles próprios não cumpriram, de pouco ou de nada adiantará. Será que se pretende rodar o mesmo filme outra vez?
Quase todas as metas apresentadas no atual PL 8.035/2010 parecem positivas ao olhar leigo: tratam, de modo geral, da ampliação das redes que oferecem educação ou ensino, e parecem propor a melhoria da qualidade desse ensino e a valorização dos profissionais com ele implicados. É ao lançar-se um olhar mais informado sobre as estratégias propostas que as preocupações surgem.

Já de início, intriga a desproporção entre as diferentes quantidades de estratégias relacionadas a cada uma das metas: das 170 estratégias propostas apenas três se referem à valorização dos profissionais da educação básica (Meta 17); são apenas seis para a difícil tarefa de atendimento escolar de estudantes com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades ou superdotação, tudo isso dentro do louvável propósito de universalizar esse atendimento na rede regular (Meta 4); mas há o impressionante número de 25 estratégias para que determinados valores médios do IDEB [1] sejam atingidos ao longo da década (Meta 7).

Entretanto, é o debruçar-se sobre o conteúdo das estratégias que suscita a grande preocupação com o real conteúdo político do PNE proposto. Aquilo que, pela sua duração e propósito, deveria ser um Plano de Estado revela-se sob a maioria dos aspectos apenas um plano do atual governo, sequência da gestão anterior. Estão incluídas como estratégias determinações que não constariam normalmente em outros planos nacionais, pois são de caráter meramente operacional. Por exemplo, substituir o Enade [2] aplicado ao final do primeiro ano do curso de graduação pelo ENEM [3] (estratégia 13.6) ou determinar renovação integral da frota de veículos de transporte escolar (estratégia 7.5). Ou, ainda, são determinações absurdas, como exigir que a taxa média  de conclusões de cursos de graduação presenciais nas universidades públicas seja de 90% (estratégia 12.3), quando, na média mundial, essa taxa se encontra perto 70%, sendo raríssimos os casos de cursos ou instituições que atingem taxas de conclusão superiores a 90%, tanto no Brasil como nos demais países.

Exemplos como os citados poderiam ser descartados como folclóricos e eliminados na análise a ser feita no Congresso. Mas muito mais perigoso é o teor privatizante que a leitura atenta faz aparecer. Há estratégias que favorecem a atuação da iniciativa privada perpassando quase todas as metas, da educação infantil (Meta 1) à pós-graduação stricto sensu (Meta 14).


Um parêntesis se faz necessário aqui. Durante o ano de 2010, a exemplo de outras Conferências Nacionais temáticas, o ministro da educação do governo Lula, ainda no cargo nesse início de novo mandato, fez promover uma grande Conferência Nacional de Educação (Conae), precedida por conferências estaduais, regionais e municipais. Se não nas instâncias inferiores, na Conae algumas das teses dos movimentos pela educação pública, majoritárias nas décadas anteriores, acabaram prevalecendo. Assim, à página 107 de seu Documento Final consta explicitamente: “aplicação dos recursos públicos exclusivamente em instituições públicas”. De forma consistente, à página 112 do Documento é preconizada a gradual extinção de matrículas com dinheiro público em creches conveniadas e à página 67 encontra-se a resolução de que, ao final da década, 60% do total de vagas na educação superior devam encontrar-se em instituições públicas. Entretanto, o PL 8.035/2010 posiciona-se em direção diametralmente oposta às deliberações da Conae ao formular sua estratégia 1.4 nos seguintes termos: “estimular a oferta de matrículas gratuitas em creches por meio da concessão de certificado de entidade beneficente de assistência social na educação”. Também apresenta sua Meta 12, “elevar a taxa bruta de matrícula na educação superior para 50% e a taxa líquida para 33% da população de 18 a 24 anos, assegurando a qualidade da oferta”, sem condicionar essa elevação a qualquer restrição quanto à natureza, pública ou privada, da instituição.

Desse modo e analogamente, há grande chance de que a proporção de três quartos das matrículas em instituições privadas continue ou, pior, venha a se acentuar, repetindo o que ocorreu nas últimas duas décadas. O Brasil, ao sustentar essa escandalosa proporção já se encontra, atualmente, na incômoda posição de um dos três ou quatro países com menor presença do setor público e de campeão da privatização com fins lucrativos.

A prevalecerem algumas das estratégias propostas no PL 8.035/2010, a situação pode ainda piorar, ainda mais levando em consideração que parcela importante do Congresso, por onde
 o projeto fatalmente passará, tem viés claramente privatista. Se, na década passada, o ProUni foi uma tábua de salvação para as instituições privadas, estranguladas pela falta de capacidade dos segmentos mais desfavorecidos da população de arcarem com as mensalidades, talvez o PNE proposto venha a garantir sua expansão na próxima década. O texto do PL fala explicitamente em expansão do FIES [6], em geral (estratégia 12.6), especificamente para as licenciaturas (estratégia 15.2) e, muito mais preocupante, para a pós-graduação stricto sensu (estratégia 14.3). Abre-se, desse modo, um imenso leque de possibilidades para a invasão dos interesses particulares também nas áreas antes restritas à atuação pública. Finalmente, para não excluir instituições privadas de outras modalidades, a estratégia 11.6 propõe estender o financiamento estudantil à educação profissional técnica de nível médio [7] e há pelo menos cinco estratégias ao longo do texto que, de forma velada, ao se referirem a entidades privadas de formação profissional vinculadas ao sistema sindical, provavelmente denotam o conhecido Sistema S das entidades patronais.

A problemática da entrega da educação a entes privados é conhecida e será abordada aqui apenas brevemente e em seus aspectos gerais. A educação está inscrita na Constituição Federal de 1988 como um direito fundamental da condição humana. Ora, entes privados, por sua própria natureza, são guiados por interesses particulares, de pessoas ou de agrupamentos, não tomando como referência os interesses mais amplos da sociedade. Como conseqüência, na Educação Superior, por darem lucro, são oferecidos cursos de baixo custo, que não demandam instalações especiais, com títulos chamativos, em áreas da moda e apenas em regiões em que há suficiente poder aquisitivo. O tratamento dado aos docentes em grande parte das instituições privadas é desrespeitoso, explora o trabalho e desrespeita critérios acadêmicos. Ademais, o ambiente criado em tais instituições, em qualquer nível de ensino, é propício a inculcar nos estudantes os valores do estamento social lá predominante ou, até mesmo, a segregar os estudantes segundo tais pontos de vista, contrariando a ética republicana que a Constituição pretende representar. Assim, promover ainda mais a privatização de nosso sistema educacional acirrará os problemas e distorções já constatados.

Além do viés ideológico, que imediatamente se coloca, há mais uma explicação do porquê de aparecer, no PNE proposto, um apelo freqüente à “colaboração” de entidades privadas. As projeções [8] indicam que as metas inscritas demandam, pelo menos, 10% do PIB para que haja alguma chance de sua concretização. Foi essa também a resolução aprovada na Conae, conforme seu Documento Final (p.110) e isso a ser atingido já em 2014. Embora o ministro da Educação venha afirmando que 7% do PIB (Meta 20) seriam suficientes para alcançar as metas do PNE [9], isso apenas é possível pelo rebaixamento da qualidade, pela baixa remuneração dos docentes e demais trabalhadores da educação, e até mesmo por intermédio da contribuição do próprio estudantado e de suas famílias, escondida em mecanismos tipo FIES (pois o dinheiro emprestado pelo governo tem de ser devolvido [10]), além do incentivo maciço a mecanismos como o ensino a distância (EaD, estratégias 10.3; 11.3; 12.2 e 14.4), mais barato em sua vertente mercantil e absolutamente inadequado para a formação inicial, em qualquer profissão, quanto mais para as licenciaturas.

Para completar a problemática do devido financiamento, nem para esses insuficientes 7% do PIB aos quais se refere a Meta 20, as seis estratégias propostas dão conta de garantir recursos. De fato, a estratégia 20.1 refere-se simples e textualmente  a “Garantir fonte de financiamento permanente e sustentável [...]”, sem jamais dizer como isso se dará e de que modo os recursos por ventura aportados seriam distribuídos entre as três esferas da federação, responsáveis por “todas as etapas e modalidades da educação pública”.
É no mínimo curiosa a forma de redação da estratégia 20.5, que parece inverter a relação causa-efeito: “Definir o custo aluno-qualidade da educação básica à luz da ampliação do investimento em educação.” Novamente aqui, é interessante olhar a forma adotada pela Conae, que se refere a tomar o mecanismo custo aluno-qualidade como referência para o financiamento da educação básica (p. 109), colocando assim as relações na ordem correta.

Na realidade, há, em muitos casos, um descompasso generalizado entre as metas e suas respectivas estratégias, que chega a situações cômicas, como a da Meta 13, que preconiza a elevação da qualidade da educação superior pela ampliação da atuação de mestres e doutores nas instituições: de suas sete estratégias, cinco se referem a avaliações, sendo três explicitamente à avaliação dos estudantes; uma se refere a “pesquisa institucionalizada, na forma de programas de pós-graduação”; e a última demanda a formação de “consórcios entre universidades públicas [...]”. De modo estranho, nenhuma estratégia liga a qualidade diretamente à titulação dos docentes, como seria de se esperar pela leitura da Meta. A Meta 16 também constitui uma curiosidade: determina “formar 50% dos professores da educação básica em nível de pós-graduação lato e stricto sensu [...]” e, de modo análogo, não se detém para fundamentar como isso influiria na qualidade do ensino ministrado. Será que ambas as metas serão utilizadas para garantir uma maior penetração do sistema privado também na pós-graduação, com financiamento público, mas sem a devida qualidade e sem consideração às prioridades sociais? Aliás, se há algo que faz falta no PNE proposto é uma conceituação de qualidade da educação!

O texto inteiro do PNE proposto peca por confundir qualidade da educação com sua suposta aferição por avaliações e exames nacionais padronizados. Há determinações nesse sentido desde a educação infantil (estratégia 1.3) até a determinação da aplicação de “uma prova nacional específica [...] para o provimento dos cargos de diretores escolares.” (estratégia 19.2). Há, ao todo, 15 referências, ao longo das 20 metas, a alguma avaliação desse tipo. A mais constrangedora é a crença de que, por lei, possam ser atingidos determinados valores do IDEB e, pior ainda, da pontuação do programa internacional da OCDE, o PISA [11].
Ao se pretender, de modo correto, atacar o problema fundamental da qualidade da educação, que seria por intermédio de ações de valorização do magistério da educação básica (Meta 17), nenhuma das três estratégias propostas parece ter qualquer efetividade. A primeira estratégia determina a constituição de um fórum permanente para “acompanhamento da atualização progressiva do piso salarial[...]”, que, hoje, sabidamente está muitíssimo aquém do necessário e, mesmo assim, sofreu forte resistência de governadores e prefeitos para sua implantação, inclusive com ação no Supremo Tribunal Federal apenas recentemente rejeitada, ainda que parcialmente. Ressalte-se que a questão de um terço da jornada dedicada a outras atividades educacionais fora da sala de aula, requisito essencial para um ensino básico de qualidade, aprovado na mesma lei que vinha sendo contestada, sofreu oposição ainda maior por parte daqueles agentes públicos.

Na mesma toada inefetiva, a estratégia 17.2 preconiza que o acompanhamento se dê por meio de indicadores obtidos a partir do PNAD do IBGE, enquanto a estratégia 17.3, a última, manda, genericamente, implementar planos de carreira, com vista a que a jornada seja cumprida em um único estabelecimento escolar. Em comparação às práticas em outros países, as condições de trabalho e a enorme defasagem salarial dos professores da educação básica , em relação a outras profissões, são certamente o calcanhar de Aquiles dos sistemas educacionais públicos. Não há como se falar em qualidade da educação enquanto os profissionais com ela envolvidos, em sua absoluta maioria, correrem de um estabelecimento para outro — por vezes com três jornadas — e forem obrigados a ministrar aulas, num mesmo ano letivo, a turmas que somam centenas de alunos.
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    Conclusão. A partir dos breves destaques feitos no presente artigo, fica evidente que a comunidade educacional e, mesmo, a sociedade civil em geral tem todos os motivos para acompanhar de perto o trâmite do Projeto de Lei 8.035/2010 no Congresso nacional, organizando-se, não apenas para evitar muitos dos problemas detectados, mas para tentar influir de modo positivo e propositivo.
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 [1]  Índice de Desenvolvimento da Educação Básica, indicador que combina taxas de reprovação e evasão escolar com o desempenho dos estudantes em provas e exames.
 [2] Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes (Enade) é uma prova escrita, aplicada anualmente, usada para avaliação dos cursos de ensino superior.
 [3] Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) é uma prova escrita, optativa, aplicada anualmente e usada para avaliação dos estudantes que completam o ensino médio.
 [4] Fundo de Financiamento ao Estudante do Ensino Superior (FIES) é um programa do MEC que financia matrículas e mensalidades em instituições privadas de ensino superior
 [5] Ação, por sinal, já iniciada por meio do Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego (Pronatec), cujo projeto de lei foi encaminhado ao Congresso Nacional no final de abril de 2011.
 [6] Fundo de Financiamento ao Estudante do Ensino Superior (FIES) é um programa do MEC que financia matrículas e mensalidades em instituições privadas de ensino superior
 [7] Ação, por sinal, já iniciada por meio do Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego (Pronatec), cujo projeto de lei foi encaminhado ao Congresso Nacional no final de abril de 2011.
 [8] Há vários textos a respeito. Em particular, pode-se indicar uma análise recente publicado no Correio Braziliense, acessível em http://blogolitica.blogspot.com/2011/04/dez-por-cento-do-pib-para-educacao.html
 [9] Ver, por exemplo, reportagem no Informativo Adusp 324, acessível am http://www.adusp.org.br/noticias/Informativo/324/inf32403.html.
 [10] Trata-se, na verdade, de um subsídio indireto às instituições privadas de ensino.
 [11] Program for International Student Assessment (PISA): baseia-se em uma avaliação de estudantes com 15 anos de idade e com menos do que dois anos de defasagem idade-série. O programa é patrocinado pela Organização de Cooperação e de Desenvolvimento Econômico (OCDE).

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