6 de out. de 2008

Ensino a distância?

Publicado originalmente no Jornal da USP n. 847, de 6 a 12 /10/2008
Otaviano Helene e César Minto
O ensino a distância é um importante instrumento complementar ao ensino presencial e, também, uma alternativa eficiente para a solução de casos emergenciais, por exemplo, para o atendimento de pessoas: 1) com sérios problemas de saúde e ou de locomoção; 2) em situações de cárcere; 3) em regiões longínquas dos centros urbanos, onde o ensino presencial é ainda absolutamente inviável.
É, sobretudo, com essa perspectiva que vários países o adotam. Entretanto, equivocadamente, no Brasil o ensino a distância tem sido proposto não para cumprir tais finalidades, mas sim em substituição ao ensino público presencial e, ademais, tem sido inadequadamente recomendado, em especial, para a formação de professores.

Alega-se, para justificar a adoção indiscriminada do ensino a distância, a impossibilidade de as pessoas freqüentarem o ensino presencial, a falta de professores na educação básica (estimada em cerca de 250 mil) e a existência de novas técnicas e tecnologias de informação e comunicação (TIC). Contudo, essas alegações não se sustentam. Não se justificam, por exemplo, nem a criação da Universidade Aberta do Brasil (UAB) pelo governo federal nem a implantação da Universidade Virtual do Estado de São Paulo (Univesp) pelo governo estadual, se a finalidade de ambas for substituir o ensino presencial.
É preciso deixar bem clara a distorção que tem ocorrido em nosso país: não se trata da impossibilidade “natural” de setores expressivos da sociedade freqüentarem cursos presenciais em instituições de ensino superior (IES) públicas, mas sim de que tais instituições não oferecem vagas em número suficiente para atender a demanda potencial de estudantes egressos do ensino médio. No estado de São Paulo, por exemplo, as IES estaduais e federais oferecem, em cursos de graduação, apenas uma vaga para cada grupo de 20 jovens que concluem o ensino médio. Isso não é condizente com o desenvolvimento do país.
A tentativa de resolver o problema da falta de professores na educação básica por meio do ensino a distância é falaciosa e incorre num erro tão grave quanto o real problema. A falta de professores é causada pelas precárias condições de trabalho nas escolas públicas – o que inclui a quase total ausência de bibliotecas e de laboratórios (bem equipados e mantidos) – e pelos péssimos salários pagos aos profissionais que nelas trabalham (em São Paulo, por exemplo, paga-se menos de R$ 10 pela hora de trabalho). Tais fatos explicam, igualmente: a alta evasão nos cursos de licenciatura, o não raro recurso à migração para cursos mais atraentes, a enorme quantidade de professores já formados que passam a se dedicar a outras atividades, seja integralmente, seja mantendo a docência como um “bico”.
As TIC também não são uma justificativa válida para a substituição do ensino presencial pelo ensino a distância. Primeiro, porque a interação entre estudantes, entre estes e os professores, assim como o contato sistemático de ambos com os objetos de conhecimento, são atividades essenciais no processo educativo. É evidente que nada disso ocorre a contento no ensino a distância, e é muito tênue e insuficiente no ensino dito semipresencial. Segundo, porque não é lícito confundir a possibilidade do ensino a distância com a disponibilidade das TIC, que muito podem contribuir nas atividades didáticas (presenciais ou não). Haja vista a utilização adequada que muitos países fazem do estudo programado, da comunicação por correio, telefone, televisão etc. Vale dizer: não são as TIC – que curiosamente não são preconizadas para o ensino presencial! – que definem a essência do ensino a distância.
Inadvertidamente, as alegações apresentadas em favor do ensino a distância, em especial no que se refere à formação de professores, talvez consigam convencer uma parte da população, dada a situação desesperadora do ensino no país, em todos os seus níveis e modalidades, cujos indicadores quantitativos e qualitativos têm sido péssimos. Mas tentar resolver o problema da formação de profissionais – sobretudo de professores – por meio do ensino a distância é uma inadequação pela qual pagaremos muito caro no futuro, assim como hoje estamos pagando por conta de políticas inadequadas adotadas por sucessivos governos no passado.
As universidades públicas não podem endossar ou mesmo ser coniventes com tais iniciativas, da forma como estão preconizadas (UAB e Univesp); ou seja, para substituir o ensino presencial e, sobretudo, para promover pretensa formação de professores. Resistir a isso deve constituir-se numa espécie de “cláusula de barreira”, impedindo o avanço indiscriminado do ensino a distância, que deve se restringir aos casos já mencionados: em complementação ao ensino presencial e em situações comprovadamente emergenciais.
A qualidade da educação superior no Brasil está bastante comprometida, como ilustram fatos recentes relacionados, por exemplo, com os cursos de Medicina e de Direito, tanto por conta da insuficiência de instrumentos legais de efetiva fiscalização e controle como pela existência de incontáveis instituições privadas mercantis, que agem com a preocupação central de auferir ganhos financeiros. Esses componentes da realidade fazem com que as possibilidades de controle da qualidade do ensino a distância sejam ainda mais frágeis, comprometendo fortemente o nível dos profissionais formados no país, sobretudo nas áreas estratégicas, com destaque especial para os professores, que têm indiscutível responsabilidade na formação de todos os profissionais.
Sem a pretensão de esgotar os argumentos a favor do ensino presencial e, portanto, contra o ensino a distância como seu substituto, cabe observar que, no Brasil e, sobretudo, no estado de São Paulo, há milhares de mestres e doutores que sobrevivem no mercado de trabalho exercendo atividades que estão aquém daquelas para as quais foram preparados, em grande parte custeados por recursos públicos. Uma boa política de expansão do ensino superior público presencial para a formação de professores e de outros profissionais poderia valer-se desses mestres e doutores já formados, com enorme vantagem para toda a sociedade.
Otaviano Helene é professor do Instituto de Física da USP e presidente da Associação dos Docentes da USP (Adusp).
César Minto é professor da Faculdade de Educação da USP e vice-presidente da Associação dos Docentes da USP (Adusp).

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